Montana

        Bonitos, elegantes e vistosos. Todos ali dentro daquele lugar poderiam estar enquadrados em alguma das alternativas anteriores. Até a carne que era servida naqueles espetos em aço inoxidável também estaria bem qualificada. Nunca havia estado dentro de um lugar daqueles, nem de nada que se aproximasse. O máximo que conseguiu foi um restaurantezinho self-service de vila, quando ainda tinha um emprego de boy no escritório de contabilidade. Faz tempo. Hoje, desempregado, suas chances estavam reduzidas a um zero bem redondo, como aquele pedaço de picanha que parecia voar por sobre as cabeças da clientela. Era uma comilança desenfreada. A mesa de salada, que podia ver ao longe, tinha espécimes que nem conseguia saber do se tratava, vários tipos de folhas e coisas coloridas que chamavam a atenção de qualquer um, mesmo que um não esfomeado como ele.
                Ficou por ali por uns 15 minutos, de frente a porta de vidro, que ficava numa das entradas do lugar. Foi o suficiente para o segurança uniformizado e de gravata vermelha vir rodear a sua existência ali naquele pedaço. Como eram chatos esses seguranças. Nem um pouco sutis. Acham que ninguém está percebendo que eles estão ali para amedrontar e afugentar figuras indesejáveis como ele. Como sempre fez, captou a mensagem proferida pelo uniformizado e pôs-se a deixar o local. Atravessou a rua falando sozinho, resmungando baixinho da atitude do outro. Por que ele não podia ficar por ali? Causaria asco nos glutõescarnívoros? Pensava nisso enquanto olhava as vitrines chiques daquele lado da rua. Pelo menos por ali e poragora, ninguém o importunava.
                A proximidade de um novo guardinha uniformizado e, principalmente, os primeiros grossos pingos de chuva, o fez amadurecer a idéia de sair dali e procurar abrigo. Onde? Estava farto daqueles seguranças. Pela primeira vez os desafiaria. Atravessou a rua, voltando ao lado do restaurante. Dobrou a esquina e procurou a entrada que ficava na outra rua, longe da outra porta, perto de onde havia apreciado o vai e vem das carnes e onde estava aquele segurança que tinha notado a sua bisbilhotice.
                A menina vestida de terninho bege, que fazia a recepção do lugar, estranhou aquele homem ali na porta, sem saber como fazer para migrar do exterior chuvoso para o interior requintado. Ele nunca tinha estado naquela situação e não sabia o que fazer com aquela ficha, que a moça lhe entregava, um pouco relutante. Já estava ali e não podia retroceder. Pegou o papel da menina, que ensaiava uma retirada estratégica da mão. Procurou uma mesa vazia, mas um garçom, com uma roupa diferente dos demais, porém com a mesma relutância da recepcionista, se aproximou para perguntar se a mesa era para apenas uma pessoa. Ele confirmou e o garçom diferente disse que havia uma, mas que estava sendo preparada. Não sabia o motivo de se preparar uma mesa, mas esperou ali ao lado do garçom diferente, que, mesmo de rabo de olho, não deixava de notar as suas vestes. O short curto e apertado não combinava nada com o ambiente, mas a camisa listrada até que podia disfarçar um pouco... E estava para dentro do short, coisa fina. O mocassim também não faria feio se fosse mais novo e menos puído. Aqueles óculos, de lentes e aros grossos, também poderia lhe dar um ar de mais respeitabilidade. Mas parece que nada agradava aos olhos daquele garçom diferente. Decerto seriam as meias faltantes que prejudicavam o conjunto.  Quiçá o cabelo meio despenteado e semi-molhado pelo pouco de chuva que tomara.
                Foi-lhe indicada uma mesa e ele seguiu até a mesma, onde um outro garçom, esse de vestes comuns, o aguardava. Sentou-se ante ao olhar estranho do serviçal, que perguntou sobre bebidas. Não iria beber nada com álcool. Sabia que poderia dar vexame, pois não conseguia se conter na quantidade. Pediu uma Fanta, dessas de novo sabor. O garçom saiu e logo veio outro perguntando se ele conhecia o funcionamento da casa. Ficou com medo de ser expulso dali naquele momento. Talvez o funcionamento da casa não o permitisse ali. Mas manteve a pose e negou o conhecimento. O garçom deu-lhe as instruções e ele permaneceu ali pensando como era engraçado receber instruções para comer.
        Dirigiu-se até a mesa de frios e se encantou com a quantidade de saladas, aquelas mesmo que ele havia visto pelo lado de fora. A maioria da vegetação ele realmente ignorava. Só conhecia os mais tradicionais, as alfaces, tomates e cenouras da  vida. Resolveu comer só esses mesmo. Não se empanturraria de plantinhas e também não queria ser vítima de um desarranjo desencadeado por coisas estranhas ao seu estômago. Voltou à mesa e anotou numa outra ficha as guarnições que o acompanhariam nessa empreitada. Nem sabia que aquilo se chamava guarnição. Marcou um x no quadradinho desenhado depois de onde estava escrito Arroz e só. Também comer sem arroz, por mais chique que fosse o lugar, era um sacrifício para ele. Colocou a plaquetinha com o lado verde virado para cima e o festival de carnes teve início. Aves, suínos, bovinos e outros inos desconhecidos lhe foram apresentados e devorados com igual deleite. O garçom que servia a picanha em bolas era o único que não lhe olhava meio atravessado. Até fez comentários sobre o tempo e sobre o casal que sentava na mesa ao lado.
        Depois da fartura desregrada, resolveu pedir a conta. O primeiro garçom, aquele da roupa diferente, veio até ele com uma cadernetinha de couro, que foi deixada sobre a mesa. Só a caderneta era chique, pois os papeizinhos que estavam por dentro eram os mesmos que ele lembrava ter visto na conta do self-service da vila. O valor é que era infinitamente superior. Pediu ao garçom amigo para chamar o garçom diferente. Quando este chegou, ele lhe informou que não possuía o montante para saldar a dívida. O maitre até que não fez cara de espanto, parecia prever o acontecido. Foi questionado sobre o que desejaria fazer. Não tinha muita escapatória. Essa história de lavar pratos era coisa de desenho animado e programas humorísticos. Mas mesmo assim sugeriu essa opção. Quase falou que desejava mesmo era ir embora sem pagar e deixar por isso mesmo. Não disse porque ficou com medo de apanhar ali mesmo, na frente de toda a clientela refinada. Mas, como era um restaurante de bacanas, ele foi encaminhado pelo segurança, aquele mesmo da gravata vermelha, até a porta dos fundos, de onde foi enxotado a golpes de uma arte marcial qualquer, dessas que passam na TV via satélite. Muita pancada. Ficou com medo de passar mal e vomitar toda aquela iguaria que havia consumido prazerosamente. Segurou firme as pontadas no estômago e seguiu adiante, escorando nas paredes das lojas de grife. Menos mal não ter acabado na cadeia, onde seria castigado com uma péssima e grudenta gororoba de segunda categoria. Por mais algumas horas, pelo menos, o banquete consumido seria o único a reinar em seu combalido sistema digestivo.

Leonardo Rezende Rodrigues

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