NOITES DE NINGUÉM
Sonhando com Salomé, nua, bailando ao sol nascente, e levando numa bandeja de ouro, a cabeça dourada do profeta, acordo na madrugada, tomado por um perfume de ervas aromáticas. Chove muito, pingos d’água saltam da janela aberta molhando os cristais do altar de todas as crenças. Uma sensualidade profunda se expande pelo meu corpo frenético como um rio tempestuoso. Sem nenhuma reprovação puritana, chamo-a: “Salomé”, continuando: “Pede-me o que quiseres”. Possui-me o Ciclo das Coisas. Quanto mais desacredito na obsessão cristã de pecado, o desprendimento herege noite após noite leva-me a símbolos, a sonhos supremos, a jogos amorosos e rituais eróticos deliciosamente protagonizados por deusas telúricas, deusas lunares, almas libidinosas errantes e anjos-ninfetos, se existem anjos enrugados. Na noite de ontem, um deles, um querubim de formas redondas, macias, passou a ponta da língua nos meus lábios deixando um gosto de mel. Apalpei-o, e deu-me a impressão de que se o mordesse sentiria o sabor de um fruto inesquecível. Nos anjos-ninfetos não circula sangue, somente o sêmen mais puro. Agraciaram-me com esta revelação. Os pensamentos tomados pela voluptuosidade da enteada do tetrarca da Galiléia, a filha de Herodias. Não dormirei imediatamente. Não porque tema a impureza ou fuja da fornificação, muito pelo contrário, estou desperto para melhor sentir os luxuriantes tormentos da dançarina sensual. Ela é o diabo consentido na minha catedral gótica. Sei que pedirá que beije a boca violácea do “cabeça degolada”, e eu a beijarei como penitência. O quarto está preparado para recebê-la. Na semana santa, borrifei-o com água de rosas, para afastar as febres, as doenças, os malefícios, a morte súbita. Hoje, ao amanhecer, passei ramos bentos de oliveira, de alecrim e de rosmaninho. Debaixo do colchão, coloquei raízes de alfazema, e nos quatro cantos, sete punhados de sal grosso com cabeças de alho. Os maus espíritos não ousam chegar perto. Dificuldade senti na noite em que encontrei São Sebastião atado na poltrona ao lado da cama, desfalecido, as flechas atravessando a preciosa carne francesa. Não soube o que fazer. Ó santo guerreiro, chamei, e não houve resposta. Ó santo que afasta as pestes e a fome, o que faz neste quarto sórdido de periferia? Não moveu um músculo. Num impulso, arranquei uma das flechas, e o sangue explodiu no meu rosto. Lambi-o, desmaiando. Ao despertar, o jovem piedoso não mais estava, mas a flecha partida continuava entre os dedos e o meu pau, ainda duro, demonstrava uso. Guardei a flecha em uma gaveta, juntamente com o cacho azul de um anjo e a pulseira de âmbar de uma sacerdotisa de Sodoma. Sou um sujeito simples, dono de um quiosque há mais de vinte anos, onde vendo cigarros e lanches rápidos, e moro sozinho desde que encontraram a patroa violada e assassinada numa mata próxima. O que fazia no mato depois do entardecer? Provavelmente macumba, pois levava numa cesta de palha, velas e rosas vermelhas. Católico, freqüento a igreja de santa Luzia aos sábados, jogo dama com o pároco uma vez ou outra, e leio a Bíblia desde os onze anos. Nada conto sobre as visitas milagrosas. Ninguém sabe. Me tomariam como louco, fariam investigações. Eles não compreenderiam o triunfo da luz sobre as trevas. Como aceitariam um quarentão miserável e sem estudos se masturbando com a visão dos olhos da virgem Luzia expostos em um prato de bronze? Nem pensar. Já me acham estranho porque não recebo visitas, não vejo televisão, não ouço fofocas e nem gosto de futebol. “Que desperdício de viúvo gostoso”, disse-me esta semana, ao me ver passar, uma vizinha casada, gorda, mãe de duas crianças insuportáveis. Achei a cantada desonesta, embora não seja conservador. Entrei em casa, passei a chave no trinco, tomei um banho e dormi. Nessa noite de muitas estrelas no céu, o rei Salomão apareceu e encheu o meu cu de lírios. Confesso o constrangimento, nunca pensei no meu rabo servindo como depositário de flores, e mesmo assim passei horas no mais absoluto prazer. Hoje chove desesperadamente. A cabeça do santo surge em cima da mesa rústica, em um canto. Salomé deve estar chegando. Cansado, as olheiras marcando o rosto duro, denunciando as poucas horas de sono. As cinco levanto, preparo o café e o bolo de ovos, levando-os para o quiosque. Tudo deve estar preparado para os operários da fábrica de papel e os soldadinhos que passam por voltas das seis e trinta. Eu não rezo, nem desejo apoiar-me em qualquer oração. Como poderia pedir proteção a seres que partilham de minha intimidade nessas noites de silêncio? São quase quatro. Salomé não dá sinal de vida. Onde essa vaca se meteu? Deixou a cabeça pálida, feia, diabólica. Se não aparece para levá-la, a jogarei na mata onde foderam a vida de minha senhora, para ser aproveitada por cães e ratos. Está errado?
Antonio Júnior