Reminiscências

Marcela acordou chorando. Aturdida, levou as mãos ao rosto molhado e só  então se deu conta que sonhara.
Vira seus pais com incrível nitidez. A mãe velhinha queixando-se de  cistite, sempre acompanhada pela enfermeira amiga. O pai, preocupado com a  reação desmesuradamente magoada da filha contra a vida. Marcela sentira-se  profundamente injustiçada quando sua mãe fora acometida pela demência senil.
Houvera momentos em que odiara a tudo e a todos. Surpreendera-se inúmeras  vezes olhando com rancor os velhinhos sadios que passavam à sua frente.
— Por quê isso, meu Deus? Com tanto filho da puta solto pelo mundo por quê  minha mãe, que não fez mal a ninguém?
Somara-se a tudo isso o problema crucial em conseguir enfermeiras  competentes e de bom coração, que cuidassem adequadamente da anciã. Marcela,  nessa época, exercia um cargo importante numa empresa, tendo assim o dia
inteiro ocupado. Tudo mudara com a chegada de Elvira. Gorda, jovem e bonita,  lembrando uma musa renascentista, iluminara como um raio de sol aquela casa  toldada pela amargura. Tornara-se parte da família. Para Marcela, quase uma  irmã.

Isso fora há muito tempo. Acabara.
Limpou as lágrimas que lhe teimavam em correr pela face.
— Deve ter sido porque esqueci de orar esta noite, pensou.
Sempre rezava por seus familiares antes de dormir, entretanto havia bebido  champanhe. Nem foi tanto assim, contudo seu organismo se tornava cada dia  mais sensível ao álcool. Max, seu companheiro de três décadas, relacionava  os diversos medicamentos que ela utilizava como potencializadores do fato.
Foi difícil levantar, o corpo lhe pesava uma eternidade. Notou o silêncio da  rua embora já passassem das nove horas. Precisava da sua dose diária de  antidepressivo. Era Natal.

Mais tarde, andando à toa pela rua, viu um grupo de pivetes. Tinha saído em  busca dos raios solares, cuja energia a revigorava e acima de tudo a  afastava da depressão. Uma das crianças veio em sua direção cheirando cola.
Era uma menina parda, de cabelos curtos oxigenados, de uns oito anos  aparentes. Provavelmente muito mais...
Veio-lhe à mente um quadro da sua juventude no qual assistira, de longe, um  ladrão encerrado dentro de um ônibus ser violentamente espancado.
Recordava-se da crise de choro, movida pela compaixão, diante daquele ser  humano brutalizado. Nesse mesmo instante ouviu os gritos do amante, a seu  lado:
— Lincha, lincha.
Brigaram. Ela, horrorizada por sua reação selvagem e ele, indignado por sua  inversão de sentimentos. Soube mais tarde que o rapaz havia esfaqueado o  pescoço de uma jovem mãe, na praia, e perfurado sua carótida, matando-a.

Uns dois anos depois foi agredida por três meninos pequenos e franzinos, em Ipanema, que a deixaram seminua rompendo-lhe a blusa e arrancando o cordão  de ouro. Como lembrança do episódio lhe restaram no colo as marcas das  unhas dos assaltantes. Três linhas sanguinolentas manchadas de preto.
Estranha combinação de sangue e de sujeira. Ao vê-los correr para o morro,  uma favela, foi possuída pela ira e momentaneamente desejou ter poderes para  explodir o local.
Max, faz questão de lhe cobrar a idéia até os dias de hoje:
— Você só se importa quando o mal a atinge diretamente. Já se esqueceu do  ladrão assassino que eu queria linchar?

A menina cheirando cola se aproximava cada vez mais. O sinal estava fechado  e o movimento dos carros era intenso. Ambas sabiam disso. Mulher e criança  se encararam. Marcela não conseguiu ter ódio nem medo. Na verdade não soube  explicar, nem para si mesma, sua reação. Olhou para a garota suavemente,  quase com carinho. A pequena chegou bem próximo deu uma voltinha e sorriu.
Sorriso puro, infantil. Enternecida, Marcela abriu um largo sorriso:
— É só uma criança, coitadinha, pensou segurando as lágrimas.
A falsa lourinha afastou-se aos pulos, cuidando em não largar a garrafa de  cola, porém voltando-se continuadamente para lhe sorrir. Parecia alegre e  satisfeita. Marcela atravessou a rua também sorrindo. Acenou em despedida e  resolveu voltar para casa, invadida por súbita felicidade.

Danna D.

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