O Fantasma

Solidão, não sei se a solidão pode ser uma amiga ou uma inimiga. Tudo depende do momento e da situação. Às vezes eu vou com Linda e sinto-me sozinho. Sozinho junto dela. Outras vezes ela  costuma falar muito e em outras ocasiões ela fica muito calada. Como absorvida em seus pensamentos. Absorta. É um silêncio que pode resultar muito embaraçoso. Não é um silêncio de amor. Conheço bem o silêncio de amor. Mas esse não era o silêncio da maioria das nossas situações. Era, sim, um silêncio muito especial.
Linda quis que eu a levasse a uma povoação da costa marítima chamada Bell-on-the Sea, no sul. Eu a levei para lá. A povoação estava festejando os seus festivais de verão. Acredito que foi o escritor J. Bayley quem falou que essas póvoas que festejam esses festivais são a coisa mais tediosa da Criação. Ele tem razão. Nessa povoação fizeram alguma coisa para animar as festas. Fizeram de novo o conhecido espectáculo de alguém se jogar da torre da igreja. Foi um jovem herói chamado Anthony. Ele errou e matou-se. Além disso não tivemos lá nenhuma coisa mais "animada". As senhoras amantes dos festivais propuseram-me falar sobre algum escritor. Eu não sabia muito bem o que falar para elas. Tive a feliz ideia de falar sobre os fantasmas da região. Elas gostavam muito desses espectros. A povoação tivera nos séculos passados um espectro muito famoso, Sir J. F. Galbraith, um pirata dos mares que assaltara e roubara um monte de navios espanhóis na América. Depois ele voltara  para Bell-on-the Sea muito rico e fizera lá uma  grande mansão, que ainda estava firme.
Por enquanto, Linda divertia-se muito junto de suas amigas. Algumas delas eram já conhecidas de muito tempo atrás e outras eram novas amigas que ela tinha conhecido nos seus frequentes passeios junto do mar.
Comecei a preparar a conferência cultural. Linda e eu estávamos instalados num confortável hotelzinho do lugar. Quando, de repente, olhando o pequeno jornal dessa povoação, eu vi um pequeno anúncio. Alugavam-se quartos na mansão do famoso pirata. Essa mansão era já uma propriedade de um antiquário inglês que, segundo algumas pessoas, decidiu obter algum dinheiro desse investimento.
Comentei isso com Linda. "Você pode imaginar? Será enorme! Quiçá podamos dormir no quarto do pirata!". Estava já imaginando as dimensões desse quarto: a altura das paredes, as grandes e pesadas lâmpadas metálicas, os quadros, a grande cama com o seu dossel e a escada de madeira que com certeza tínhamos que subir para chegar até o nosso quarto. Linda não estava muito entusiasmada com esse assunto. Nem sequer com a possibilidade de dormir na cama do pirata, que eu imaginava de madeira e com um dossel enorme. Linda achava aconchegante o pequeno quarto que tínhamos no hotelzinho perto do mar.
Preparei as malas e comuniquei nessa mesma noite à direcção do pequeno hotel a nossa vontade de nos mudar para lá ao dia seguinte.
E assim foi. Chegou o dia seguinte. De manhã cedo tínhamos as três malas na porta do hotelzinho. Um taxi levou-nos até a famosa mansão.
Ao chegar lá, essa mansão que ficava algo longe do mar pareceu-me fabulosa. Era uma grande mansão de estilo inglês, de pedra. Eu imaginava-a assim. Com uma grande porta de madeira no centro e grandes janelas aos lados. Tinha na entrada um grande jardim de estilo inglês também.
Linda desceu do taxi  e eu depois dela. Um mordomo inglês, muito sério e imperturbável, ajudou-nos no transporte das malas. "A Senhora e o Senhor vão dormir no quarto de Sir Galbraith" disse o mordomo para a minha satisfação. "É uma grande honra para nós!", comentei ao mordomo, muito satisfeito no meu interior. Mas Linda não parecia estar muito contente. Ela não tinha cara de grande satisfação. Percebi-o no seu olhar.
Entrámos na grande mansão que tinha uma entrada magnífica. Subimos acompanhados do mordomo pela grande escada de madeira, que fazia um ruído especial com nossos passos, tal e qual eu imaginava. Chegámos ao primeiro andar e virámos à direita. Seguimos por um longo corredor que tinha quartos à  direita e  à esquerda. Ao chegar a meio desse corredor parámos e entrámos num quarto enorme. Do lado direito.
Esse quarto era como eu o imaginara na minha mente. Tinha as paredes muito altas, uma grande lâmpada metálica no teto, que parecia muito pesada, duas grandes janelas e uma grande cama de madeira coberta com um longo dossel branco. "A cama do pirata!", pensei no meu interior.
Estava entusiasmado, ao comprovar que não me tinha enganado, mas Linda não manifestava alegria ou entusiasmo nesse instante.
O mordomo e um outro ajudante dele deixaram as nossas malas no chão do quarto e, após lhes dar algum dinheiro, fecharam a porta.
Tomámos o pequeno almoço ao estilo inglês e depois Linda e eu fomos dar umas voltas ao redor da mansão. Ela, cada vez mais mergulhada em seus pensamentos, e eu cada vez mais sozinho. Esse silêncio já me parecia muito fastidioso.
O almoço foi excelente e tivemos a companhia do antiquário inglês na nossa mesa e, como éramos os únicos convidados, ele contou tudo sobre a história dessa mansão. Eu desejava fazer-lhe algumas perguntas sobre o nosso quarto e sobre a cama do pirata. Queria saber se o nosso quarto tinha os mesmos móveis que o pirata usara. Pensava sempre na cama dele. Mas contive-me pela grande loquacidade do nosso anfitrião, que falava sem parar tudo o tempo.
O jantar foi íntimo e a ele foi também o antiquário, mas esta vez foi acompanhado pela sua esposa. A mesa estava enfeitada com círios e o jantar resultou realmente romântico. Foi a primeira vez que eu vi um brilho especial nos olhos de Linda. Ela gostava muito desses detalhes. Linda começou a ter uma animada conversa com a mulher do antiquário. Eu ficava completamente calado pelas prolixas explicações do proprietário sobre a sua profissão e a comarca que rodeava a mansão.
À meia-noite um grande relógio de parede começou a soar e as doze badaladas ressoaram em toda essa gigantesca mansão. Nós estávamos à luz dos círios e todo o ambiente era já fantasmagórico. Levantámo-nos finalmente da mesa e após nos despedirmos afectuosamente fomos até o nosso quarto.
Linda estava já muito cansada e eu também precisava descansar o corpo após um dia algo agitado. Subimos pela grande escada, que com essa luz resultava realmente tenebrosa, e entrámos no nosso quarto. Senti muito frio lá e peguei com rapidez um cobertor que eu pus em cima da cama.
Fomos à cama dos meus sonhos. Com o cobertor eu apenas sentia já o frio do quarto. Não tardei muito tempo em adormecer. De repente,acordei. Sentia-me mal. Olhei o relógio. Eram às quatro horas e vinte da madrugada. Vi umas estranhas luzes em volta duma das grandes janelas do quarto. Levantei-me intrigado mas também muito desassossegado. A grande janela parecia toda ela percorrida por uma rara luz da qual eu não adivinhava sua procedência.
Sentia uma sensação muito estranha. Eu estava cada vez pior. "O que poderá ser?", pensava. Encaminhei-me para essa grande janela e fiquei observando através dela. Toda a povoação ficava em silêncio e na ordem perfeita. Ninguém na rua a essa hora da madrugada. Só se destacava a alta torre da igreja no fundo. Eu sentia uma sensação de vazio na minha vida e uma profunda solidão. Observei ao lado dessa grande janela um quadro que representava a mesma paisagem que eu estava olhando através da janela. Na aparência nada havia mudado, apesar do passar dos séculos. Tudo parecia igual. Quantas vezes o pirata teria observado essa mesma paisagem e o seu quarto quiçá nessa mesma hora com a mesma sensação de vazio na vida e grande solidão que eu tinha também nesse instante! Parecia que os dois sentíamos o mesmo apesar da grande diferença de séculos que ele e eu tínhamos.
De repente, tive a sensação de observar a paisagem e o quarto com meus olhos e também com os olhos de Sir Galbraith. Parecia-me como se o famoso pirata estivesse junto de mim nessa noite, ou ele dentro de mim ou eu dentro dele. Eu não sabia muito bem como explicar isso.
Também eu fiz desfilar toda a minha vida enquanto olhava a póvoa nessa madrugada.
O pirata e eu coincidíamos numa sensação de vazio na vida, de grande desassossego e caíamos numa depressão a cada vez maior. Sabia que o pirata morreu muito rico mas ele teve uma vida muito desgraçada. Sem parentes, sem amigos, sem felicidade, sem amor. Ninguém o amou realmente. Muitas vezes ele levantar-se-ia à mesma hora em que eu acordara nesta madrugada e teria feito desfilar também toda a sua desgraçada vida enquanto olhava a póvoa através da mesma janela que eu tinha na frente. E eu estava fazendo a mesma coisa que ele fazia. Eu não podia dizer que a minha vida junto de Linda era uma vida muito feliz; eu sentia-me cada vez mais sozinho, com poucos amigos e parentes. Deixando passar também a felicidade. Com essa sensação triste e deprimente voltei para a cama.
No dia seguinte não falei com Linda nem com meus anfitriões. Mas decidi deixar a mansão nesse mesmo dia para nunca mais voltar para ela, após a mais estranha e fantástica experiência fora da normalidade que eu tivera na minha vida. Daí para a frente eu procuraria a busca da minha felicidade com todas as forças ao meu alcance. Quem possa entender que entenda.

Pablo Francisco Gutiérrez Fernández

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