HELENA DE
MOÇA - UMA NORDESTINA
No tempo da
Ditadura, para não se ser preso e torturado, ia-se para a clandestinidade,
isto é, a gente fugia por aí, mudava de nome, arranjava documentos
falsos; tudo para poder sobreviver. Embrenhava-nos pelos sertões
e caatingas deste país, pelos lugarejos mais perdidos e inóspitos,
sempre mais próximos dos campos do que das grandes cidades. Aproveitavamos
para transmitir nossas idéias políticas aos camponeses, a
ensiná-los a viver melhor e a lutar pelos seus direitos. Os direitos
da mulher, por exemplo, que, no campo, é muito maltratada. A mulher,
não só trabalhava na enxada. Quando não trabalhava
na enxada, ela vivia do dinheiro do homem que trabalhava na enxada, então,
na verdade, era um problema comum, não era um problema de homem
e um problema de mulher. A gente explicava coisas desse tipo aos camponeses.
Um dos itens que a gente explicava também, era o da Reforma
Agrária, a distribuição de terra, porque o problema
é que, se você não dá condição
de trabalho e assistência técnica, não adianta. Dar
a terra, não significa nada, significa que ele vai vendê-la
depois! Logo em seguida! Ele vai vender, transformar a terra em dinheiro,
comer mais um mês e pronto, estará pedindo esmola de novo.
Não é esse o problema: é infra-estrutura.
A terra só por si, não produz; então é medida
puramente demagógica, esse negócio de distribuição
de terras aí. No ano que vem, não tem ninguém mais
com essa terra; dificilmente vai ter. Porque pode até ter terra,
mas e semente? Onde é que ele vai comprar semente? Onde é
que ele vai comprar arado? Adubo, que é importado, que é
multinacional que vende? Não tem a menor chance de nada.
Quantos anos
são passados, de tudo isso? Janeiro de sessenta e sete, foi isso:
muitos anos. De vez em quando, a gente recebe correspondência daqueles
camponeses que ficaram nossos amigos, no tempo da Ditadura. Outro dia mesmo,
recebi uma carta. Era uma carta de uma mulher que a Luiza alfabetizou e
que era a mulher mais feia que conheci na minha vida. Era uma mulher
que se chamava Helena, Helena de Moça, uma das mulheres mais feias
que já vi na vida! Não tinha um dente! Um cabelo enrolado,
meio sarará, porque não penteava direito; meio impossível
de pentear. Só vestia preto, não tinha seio,
uma mulher reta. A mão, muito mais grossa do que qualquer mão
de homem, de tanto trabalhar na enxada. Horrorosa! Essa mulher andava com
uma capanga assim, atravessada no peito: ali tinha de tudo, tinha tesoura,
pedaço de fumo, tudo. Ela carregava aquele trem. Mas que coisa mais
linda que é lembrar dessa mulher! É. Chamava-se Helena de
Moça. E morava num lugar! Além de ser a mulher mais feia,
era a mulher mais pobre que já conheci na minha vida! Helena de
Moça. “Moça” era a mãe dela. Fulano, de Fulana. “Filha”
de Moça. Então, a Helena, ela chegou um dia. A Luiza, utilizava
muito o método de alfabetização do Paulo Freire,
um negocio genial. A Helena foi alfabetizada lá em casa. Ela gostou
demais da gente! Ela acabava o trabalho dela (morava num pé-de-serra
assim, lá de casa a gente avistava), aí, dali a pouco ela
vinha. Seis horas, seis e pouco, ela baixava lá. Aproveitava e jantava
também, porque na casa dela não tinha! E a gente conversava.
Ela ficava duas, três horas lá em casa, conversando. Às
vezes, trazia pra gente um ovo de presente. Você imagina que coisa
engraçada. Ela tinha uma única galinha. Era o ovo que ela
ia comer. E ela trazia o ovo de presente pra gente. Era um negócio
assim... Então, a mão dela era dura. Dura, cheia de
calos. Aí a Luiza falou: “ — Você não quer aprender
a ler?” Ela quase morreu de rir. Quase caiu no chão de tanto rir.
E ela não tinha um dente! Era o riso mais feio que podia existir.
“— De quê que você está rindo?” Ela respondeu: “ —
Não! Eu não aprendo a ler, não dou conta, nunca vi
nem um lápis! Nunca peguei num lápis na minha vida!”
E ela aprendeu a ler em quarenta e oito horas. A carta da qual estava falando,
é dela! A mão dela não dava conta de dobrar
para segurar o lápis, porque era acostumada a segurar coisas pesadas,
largas: enxada, esses troços. Ela começou a rir quando leu
a primeira frase; começou a rir e não parou mais. Continuamos
a dar jornal e tudo e ela começou a ler disparado! Começou
a ler de tudo. No final, mais tarde, numa grande manifestação
que nós fizemos lá, ela fez um discurso na porta da casa
do latifundiário. Ela pegou o microfone e mandou o pau! Aquilo foi
a maior afronta que os latifundiários puderam receber: que
fizesse um discurso a mulher mais pobre, mais explorada, mais feia,
mais discriminada, porque ela era mãe solteira também, entendeu?
Ela pegou o microfone e fez um puta dum discurso revolucionário.
Aquilo foi a glória! Emocionante! Foi aplaudida por mais de cinco
mil camponeses. Essa mulher! Quer dizer, um negócio dos mais bonitos
do mundo.
Yêda Schmaltz
«
Voltar