A compra

Naquele dia houve um zelo maior com as unhas, principalmente as dos pés. Precisavam estar impecáveis. Conseguiu um brilho escarlate, de esmalte novo, que a fez sorrir pela primeira vez naquela manhã.
Acordou bem cedo no sábado. Mal dormiu sonhando acordada, pois sua ansiedade, sufocante, a fez ouvir o radinho de pilha por horas, sem pregar o olho. Não tinha que trabalhar no dia seguinte. Ante seu emocionado pedido, a patroa consentiu e ela trocou a folga habitual dos domingos. Trabalhou mais na sexta-feira, deixando a casa toda arrumada. Caprichou na comida antecipadamente preparada para o almoço. Feliz, trabalhava melhor.
Terminada a pintura passou a escolher a roupa. Em seu minúsculo armário havia duas calças, duas blusas, três camisetas e um vestido de chita. Foi fácil concluir que o vestido não seria apropriado. Contudo, a escolha das calças não foi rápida. Para um dia daquela importância, estar bonita era fundamental. Optou pela jeans mais nova para acompanhar a blusa branca onde se lia "I love (em forma de coração) NY” que o patrão lhe trouxera de viagem, guardada especialmente para a ocasião. Nos pés, temporariamente, qualquer coisa que não ofuscasse o escarlate exultante.
Às oito horas já estava pronta. Nas duas longuíssimas horas que a separavam da abertura das lojas pensou na vida: desde a infância em Quixadá, repartindo fome com mais seis irmãos e a mãe solteira. Lembrou da vinda para o Rio aos doze anos de idade, quando iniciou a carreira (gostava de assim definir) de empregada doméstica. Na casa dos seus primeiros patrões, tomava conta das crianças e de sua única boneca com os mesmos cuidados. Em Copacabana conheceu os homens, ou por outra, conheceu o adolescente que um pouco, somente um pouco à contragosto, a deflorou. O patrão foi o segundo com quem ela se deitou. Desde então, instruída pelo que lia na revista "Sétimo Céu", procurava algo como prazer ou, mais distante, amor. Tudo seria agora, aos vinte e três anos,  recompensado com a realização do antigo sonho.
Como as lojas do shopping somente se abriam às dez horas, saiu de casa com quarenta minutos de antecedência. A pressa mal a deixava saborear o gosto antecipado de vitória. Não reclamou da falta de educação dos passageiros no ônibus apinhado. Nada a atingiria. O dinheiro poupado com sacrifício durante um ano permitia-lhe alguma soberba. Havia algo de superior no seu respirar. A vida começava a ser melhor. Quem sabe seu andar não seria agora mais gracioso? Quem sabe agora o porteiro-chefe do condomínio não prestaria nela mais atenção? Quem sabe ela, mais atraente e mais moderna, não estaria mais perto da paixão?  Trazia dentro do sutiã, bem guardado, a salvo de punguistas baratos, o que a faria comprar o passaporte para a felicidade.
Chegou a hesitar em frente à loja. Tremeu ao lembrar-se de que não saberia pronunciar corretamente o nome do que queria comprar, apesar de haver treinado intensamente em surdina, quase em prece, em seu quarto. Entrou na loja ouvindo-se se anunciada com batidas de cetro no chão. Apesar de se sentir admirada por todos ali dentro, nenhum vendedor, a princípio, lhe deu atenção. Algo atônita, deslumbrada com cores, luzes e gente bonita, vagou. Minutos após ter se sentado, veio alguém lhe perguntar se queria alguma ajuda. Trêmula, pediu um pouco de água. Com o copo na mão, a vendedora tinha no sorriso algo de piedade. Optou por não falar e ir apontar, e pela primeira vez tocar, o que queria. O rosto de reprovação da vendedora se modificou ao ver o que fora tirado, molhado de suor, de dentro do sutiã.
Antes de colocar na linda e colorida sacola de plástico, abraçou a caixa como se envolvesse um filho choroso, faminto. Emocionada, mal agradeceu à vendedora que disfarçava o riso. Saiu em passos largos. Carregava, quase embalava, o volume apertado junto ao peito oprimido, que retumbava as batidas fortes do coração.
Ao notar que estava sendo seguida, apressou o passo. Sentia-se mais sufocada. Não podia discernir entre a emoção da conquista e o medo instalado. Ninguém a roubaria. Anos de faxina deram a seus braços contornos fortes, musculosos, potentes para proteger sua cria. Precisava também das pernas, e as tinha rápidas. Já fora do shopping, ofegante, corria sem olhar para trás. Pressentindo maior aproximação, lançou-se desesperada e heroicamente por entre os carros na avenida.
Em frente ao ônibus logo se formou uma multidão de curiosos. O motorista em choque, ao lado do trocador, com dificuldade tentava ler, por entre a sacola rasgada, o escrito na caixa de papelão presa junto ao corpo imóvel sobre a poça de sangue escorrido da cabeça que avermelhava um meio sorriso: "réeboque".

Ricardo Hugo Oliveira

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