Anselmo arquejava ruidosamente e estava exausto. Finalmente conseguira
chegar a um local iluminado e movimentado na orla marítima da praia
do Guarujá. Por alguns instantes, achara que inevitavelmente seria
assassinado pelo bando que havia roubado o seu carro.
Respirando com dificuldade, e tentando desesperadamente sorver um pouco
da generosa brisa que soprava do mar, sentou-se num banco da praia, e aos
poucos foi se acalmando.
O mal estar generalizado que havia sentido há cerca de meia
hora, agora passara e ele já conseguia raciocinar melhor.
Precisava recompor as idéias e tomar alguma atitude. Acabara de
ser vitima de um seqüestro relâmpago, desses que vemos todos
os dias no noticiário da TV, e que sempre achamos que nunca acontecerá
conosco.
Os assaltantes eram três jovens. Dois deles estavam completamente
drogados e enquanto guiavam o carro, eles insistiam com aquele que parecia
ser o chefe da gangue, para que “apagassem” Anselmo, após sacarem
o dinheiro dos caixas eletrônicos.
Agindo com cautela, Anselmo buscava contornar a situação
dizendo a eles que ficassem calmos, pois qualquer agitação
somente serviria para levantar suspeitas, caso viessem a cruzar com alguma
viatura policial. Assim, aos poucos, ele tentava ganhar a confiança
do grupo, e após efetuarem alguns saques com os cartões que
ele carregava, dirigiram-se então a um trecho ermo e pouco iluminado
da praia, onde finalmente pararam o carro.
O líder então, disse a Anselmo que por ser um cara legal,
eles iam libera-lo. Para isso ele deveria sair do carro e caminhar para
longe dali sem olhar para trás. Trêmulo e nervoso, ele abriu
a porta e começou a caminhar pela areia da praia. À medida
que se distanciava do carro ia acelerando o passo, e em poucos minutos
ele já estava correndo o mais rápido que podia, enquanto
ouvia à sua retaguarda o som de alguns disparos que imaginou estivessem
sendo efetuados para o alto, com a finalidade de assustá-lo.
Durante aqueles minutos de angustiosa expectativa, sua única
vontade era se afastar daquele lugar o mais rápido possível,
e por isso ele corria como nunca havia corrido antes em sua vida. Corria
tanto que a sensação era de estar voando ao longo da areia
molhada da praia.
No auge dos seus 30 anos e na plenitude da sua forma física
e intelectual, Anselmo era professor de educação física
e trabalhava numa famosa academia da cidade. Além de ser um atleta
admirável, era um marido exemplar, pai de duas filhas gêmeas,
que, como ele mesmo dizia, eram o maior tesouro da sua vida.
Foi assim que ele chegou quase sem fôlego, naquele trecho
iluminado da praia, próximo a um centro comercial.
Sentado no banco da praia, ao rememorar aqueles terríveis momentos,
Anselmo caiu num pranto convulsivo. Lembrou-se da família a quem
tanto amava. Sentia-se ultrajado e humilhado, pois tivera a sua vida tratada
como um objeto de pouco valor, que pudesse ser descartado a qualquer momento.
Que violência era aquela meu Deus? Como poderia criar suas filhas
num mundo assim? Anselmo soluçava, com a cabeça abaixada
e o rosto entre as mãos. Depois de algum tempo, sentiu-se mais aliviado,
mas um intenso cansaço tomou conta do seu corpo deixando-o prostrado.
Talvez fosse o efeito da excessiva carga de adrenalina a que fora submetido,
em função dos dramáticos acontecimentos, que ele vivenciara
nas últimas horas.
Ao tentar se levantar cambaleou e quase caiu. Resolveu então
se deitar na areia da praia e descansar por alguns minutos, antes de voltar
para casa.
Olhou à sua volta para certificar-se de que o lugar era seguro.
Notou que a alguns metros de distância alguns jovens disputavam uma
partida de futebol numa quadra de areia iluminada. Do outro lado, várias
pessoas faziam a sua caminhada noturna pelo calçadão. Assim,
sentindo-se mais confiante, acomodou-se na areia ainda morna, pensando
mais tarde, em ir até o posto policial mais próximo para
dar queixa do assalto e principalmente ligar para casa, já que os
assaltantes também haviam roubado seus documentos e o celular.
E foi assim, em meio a um turbilhão de pensamentos e emoções
em desalinho, que Anselmo acabou adormecendo, sem conseguir resistir ao
sono profundo que repentinamente, dele tomou conta.
Quando acordou o dia já estava avançado. Sobressaltado,
olhou à sua volta lamentando-se por ter dormido demais. Já
devia ser mais de meio-dia, pois o sol estava a pino. Seu primeiro
desejo foi seguir imediatamente para casa, e por isso ele saiu caminhando
pelas ruas mais próximas, à procura de um táxi. Sentia-se
bem melhor, pois o fato de ter dormido devolvera-lhe a disposição
do corpo e a lucidez da mente. Por outro lado mostrava-se angustiado, pois
sabia que a sua esposa certamente estava desesperada, por não ter
recebido nenhuma noticia sua, desde a noite do dia anterior, quando saíra
da academia.
Cansado de acenar para os táxis sem que nenhum deles parasse,
e mal contendo a ansiedade, Anselmo resolveu então seguir a pé
para casa.
A sua ida até a delegacia de policia ficaria para depois, pois
afinal de contas, o fato de estar vivo importava muito mais que o roubo
do carro. E naquele momento, o que ele mais queria era poder abraçar
a esposa e as duas filhas.
Quando já estava a apenas alguns metros de casa, Anselmo notou
um enorme rebuliço em frente à sua residência. Seu
coração disparou e ele apertou o passo temendo pelo pior.
Pensou logo em sua mãe, que tinha problemas de coração
e morava com ele desde que seu pai havia falecido de câncer, há
cerca de dois anos.
Aflito, passou tão rapidamente pelo portão que mal percebeu
os amigos e parentes que se aglomeravam na entrada principal. Ao adentrar
a casa, foi logo divisando sua esposa, sentada numa cadeira ao lado de
um caixão, onde um corpo estava sendo velado.
Anselmo entrou em desespero. Amava profundamente a sua mãe,
e não tinha coragem de aproximar-se para vê-la naquele estado.
Como ele pudera não estar presente, durante aquele grave acontecimento?
Porque não viera direto para casa após o assalto que sofrera?
Porque ficara dormindo durante tanto tempo na areia da praia?
Anselmo visivelmente emocionado olhava para sua adorável esposa,
que também estava profundamente abatida, tentando buscar nela apoio,
consolo e refrigério para o seu coração.
Somente ao se aproximar dela, foi que ele notou a presença da
sua mãe, sentada numa cadeira mais recuada, posicionada à
direita do caixão. A venerável senhora estava inconsolável,
ladeada e abraçada pelas duas filhas gêmeas de Anselmo, que
também choravam muito.
Anselmo estacou de repente. Agora estava confuso. Mas quem é
que morrera então? Quem estava sendo velado naquele caixão
dentro da sua própria casa? Devia ser alguém muito querido,
pois todos ali estavam profundamente consternados.
Vagueando o olhar pelo ambiente, ele começou a perceber a presença
de vários alunos e professores da academia onde trabalhava. Estavam
ali também os amigos da faculdade, os vizinhos e grande parte dos
parentes.
Então, ao se inclinar sobre caixão, uma poderosa e incontrolável
sensação de medo tomou conta de Anselmo que ficou em estado
de choque se deparar com o próprio corpo ali deitado.
Diante daquela terrível visão, num passe de mágica,
como se fosse um filme projetado em alta velocidade, começaram
a desfilar em sua mente, todas as cenas da sua vida, inclusive os lances
finais do assalto que ele sofrera.
Anselmo reviveu o momento fatídico quando, ao sair do carro
e começar a correr pela praia, fora alvejado pelas costas por um
dos assaltantes que estava drogado. Presenciou a queda do seu corpo agonizante
na areia da praia e também viu o líder do bando agredir o
assassino, tomando-lhe a arma em sinal de reprovação, para
depois entrarem no carro e saírem em disparada.
Ao compreender o que havia lhe acontecido, Anselmo soltou um grito
de pavor e quase perdeu os sentidos. Queria fugir dali mas simplesmente
não conseguia.
Subitamente, sentiu-se amparado por mão fortes e generosas,
que o seguraram chamando-o pelo nome.
- Meu Deus... exclamou ele! Aquela voz ... sim... como poderia esquecer
aquela voz! Lutando para recobrar novamente a lucidez, ele conseguiu abrir
os olhos, e foi então que se deparou com a fisionomia do seu querido
e saudoso pai que lhe sorria ternamente.
Completamente estupefato, reuniu as ultimas forças que ainda
lhe restavam e abraçou-se ao seu progenitor, num misto de
saudade e desespero. Chorando muito, ele permaneceu assim, por longos minutos,
aconchegado nos braços do pai que o consolava.
Surpreso, Anselmo se perguntava como tudo aquilo podia estar acontecendo.
Seu pai, que havia morrido há mais de 02 anos, estava ali ao seu
lado, e aparentava estar muito bem de saúde. Parecia rejuvenescido,
sem os sinais da grande debilidade física que a doença lhe
infligira, durante os seus últimos dias de vida física.
E quanto a ele próprio? Será que estava morto? Se realmente
morrera, como podia estar presente ali, pensando, agindo, falando? Vivera
acreditando que tudo terminava com a morte. E se não fosse bem assim?
Não! Ele ainda era muito jovem para morrer. Além do mais,
será que sua esposa e suas filhas conseguiriam viver sem ele? Quem
cuidaria delas?
Porém, naquele instante, Anselmo estava muito enfraquecido para
encontrar respostas a perguntas tão inquietantes. O estranho cansaço
que o obrigara a dormir na praia havia voltado, e dessa vez trouxera no
seu bojo um torpor ainda mais intenso. A única diferença
é que ele já não tinha tanto medo assim. Amparado
pelo pai, sentia-se agora mais seguro, para enfrentar o desconhecido.
No entanto, mesmo debilitado, ele ainda conseguiu perguntar ao
pai se realmente existia vida após a morte.
E as ultimas palavras que escutou, antes de adormecer profundamente
foram : - Sim, meu filho, existe! Pois a morte nada mais é do que
uma porta de acesso à vida!
Emmanuel Chácara Sales