Aquela lembrança surgia
embaralhada, nublada, escura como a sala de que lembrava. A sala onde estava
com aquele homem grande e simpático, doce e sedutor, era assim...
Não sabia, ao certo,
se era apenas um sonho que tivesse sonhado numa noite mal dormida, ou se
era uma lembrança que a acompanhava sempre, como uma experiência
da qual esquecera parte dela.
Como ela entrava naquela
sala escura? Não lembrava. Era uma sala de revelação
de fotografia, com aquela luz avermelhada onde somente se podia distinguir
vultos. E ela não conseguia lhe ver o rosto, ou as mãos ou
o que quer que fosse.
Aquele era um lugar misterioso
e, por isso mesmo, tinha lá seus encantos. E depois, aquele homem
de voz macia era tão doce e bonzinho... Enquanto era ainda dia,
aqui fora, lá dentro se fazia noite. Noite com estrelas vermelhas
e encantamento de boto cor-de-rosa...
Todos os dias ele a esperava
naquele quartinho escuro e abafado e todos os dias, sem faltar ela ia ao
seu encontro. O que a atraía mais era a luz, o escuro ou a voz que
sussurrava ao seu ouvido como fresca brisa em tardes quentes? Ou seriam
aquelas mãos ligeiras e leves e macias a percorrer seu corpo de
sul a norte, de leste a oeste numa viagem sem rumo certo e no entanto,
com uma chegada triunfal, com direito a banda e foguetório? Ou seriam,
ainda, aquelas fotografias de meninas tão meigas e sorridentes e
felizes e nuas que se espalhavam por tantas e tantas caixas que ele deixava
abrir, enquanto estava lá dentro, sozinha, esperando por ele, naquele
escuro, mas avermelhado quarto? Ou seria a ansiedade louca que sentia,
enquanto procurava se reconhecer nalguma menina? Não importava.
Apenas queria ficar e ficar e ficar para sempre naquele oásis de
sombras.
Poderia ficar para sempre
assim, neste esconderijo só seu e dele, não fosse aquela
mulher maluca e berrona que entrara porta adentro certa tarde, com os policiais,
rasgando a escuridão do lugar com a claridade doída da luz
de fora. Doíam-lhe os olhos e os ouvidos e a alma inteira e desnuda,
assim à mostra, assim desvendada. Que fosse ao inferno! Que lhe
emudecessem a voz! Não queria ouvir, não queria ver: seu
amado-amante, carregado em camburão da polícia em plena tarde
de sol e ela, escondida entre as caixas de fotografias das meninas. Tão
sozinhas e nuas, silenciosas testemunhas de sua sina.
Silenciosamente e cabisbaixa,
acompanhou a mulher que lhe ofereceu uma manta para cobrir seu, já,
avantajado ventre branco, redondo que brilhava à luz da lâmpada
vermelha, ainda acesa.
Odete Ronchi Baltazar