Parecia que toda sexta-feira era
dia santo, porque ele lavava as mãos e entrava em uma espécie
de reclusão sacra, sem comida, sem palavras. Ninguém nem
mais questionava a sua atitude porque a resposta nunca vinha, apenas um
grunhido quase inaudível acompanhado de um sopro forte como se estivesse
esvaziando, não os pulmões, mas o corpo inteiro, talvez a
alma e isso também dava a sensação de santificação.
Não se ouvia música neste dia e nem se ligava a televisão,
que ele vinha de onde estivesse e nem mesmo olhava pra gente quando metia
a mão no controle remoto e desligava os aparelhos. Contestar era
tolice; tantas vezes ligássemos, tantas ele desligaria. Toda sexta-feira
vestia branco, dos sapatos até a armação dos óculos
que ele pintara com tinta acrílica.
Com o tempo, a gente não
se incomodava mais e nem mais despertava nossa curiosidade esta atitude
dele. Quinta-feira, meia noite, esquecia as risadas, o trabalho, os amigos,
a esposa, os filhos, os vizinhos, os problemas, os ruídos comuns
a toda grande cidade, os gritos, os xingamentos, as discussões
e caía no mais profundo silêncio e prostração.
Antes, porém, que o bairro e a cidade se acostumassem com isso,
ele havia sido desde alvo de chacota até morador ilustre, porque
muitos já lhe atribuíam milagres; de curas impossíveis
até prêmio acumulado de loteria. Depois, não. Depois,
como ele se recusava mesmo a aparecer em público a sua fama foi
minguando, minguando até que caiu em um tão profundo esquecimento
quanto o fato da sua reclusão das sextas. E ninguém mesmo
reparou quando passou a agir da mesma forma às quintas e depois
às quartas e terças até que foi desaparecendo por
completo
do convívio social e do cotidiano da vida de quem quer que fosse.
Os filhos o perderam entre os brinquedos e papéis aposentados no
quarto e a esposa casou de novo sem que ninguém questionasse a bigamia,
porque como ela, todos já haviam se esquecido do sujeito que vestia
branco às sextas e depois toda a semana e que caía em silêncio
e prostração. Mas ninguém ouvia música ou assistia
televisão, porque assim como se acostumaram com sua ausência,
se acostumaram com a mudez dos aparelhos . E, primeiro a rua, depois o
bairro e depois a cidade inteira, que não deixou de ser cidade e
não deixou de crescer, progredir e proliferar, silenciou, porque
as palavras, como o homem recluso, também acabaram por cair no esquecimento.
...E quando o som de uma porta rangendo quebrou
o silêncio da cidade que parou imediatamente, presa pela surpresa
do ruído, ninguém estranhou as asas enormes do homem que
saiu do quarto, barba e cabelos brancos até os pés e muito
menos estranharam, quando ele soprou forte e esvaziou até esmaecer
e virar ar.
Patrícia Evans