A CARTA
Um pedaço de saudade envelopado. Veio
trazendo cheiros de arroz. Do arroz novo, descabelado pelo vento. O avô
na cadeira de balanço pedindo o cachimbo. O avô descansando
do cansaço de não poder mais se cansar na lida. O gato dormindo
no tapete, como se dormir fosse a coisa única possível.
— Veja a primavera chegando.
A carreira pelos campos e as margaridas. Eram margaridas?
Não, não eram. Pareciam margaridas amarelas. Os corpos que
caíam e o riacho cantando. Sinfonias inéditas. As roupas
formando manchas no gramado.
— Me ajude a levar café para as visitas.
A mãe segurando a bandeja. O ventre volumoso.
O olhar cansado. E a carta pedindo para ser rasgada como virgem ansiosa,
querendo oferecer seu conteúdo. Leva de volta. Leva pra longe. O
muro. Atrás do muro, o campanário. Hora do Ângelus.
O rosto afogueado.
— Onde esteve até agora?
No quarto fechado repassava os momentos de sedução.
O fogo crescendo. Querendo incendiar o arrozal. O avô de olhar tranqüilo,
desafiando a morte. Indiferente à vida. Só as coisas que
se espera é que são importantes. A mãe de olhar cansado,
preocupado, descofiado. O gato nem liga.
— Amanhã te espero.
— Me espera.
— Eu te amo, Babucha.
O envelope rasgado. Três folhas de seda. Uma
letra grande, bonita, inclinada para a direita. As botas pisando o arrozal.
Não estavam lá. O campo. Era primavera. Na beira do riacho,
as manchas no gramado. A vergonha. A dor. O ódio do pai. O pai chora,
ameaça, quer matar. Dentro do peito a vontade de amar.
— Pai, você nunca amou?
A carta é comum. Notícias padrões.
Tudo vai bem. Morreu gente velha, nasceu gente nova, casaram alguns, outros
se separaram. No mais, tudo é vida cotidiana. São dias que
se arrastam carregando peso de passado. Aqui pelo menos é hoje.
Lá é ontem. Nem sequer amanheceu.
— Desavergonhados!
Só então a nudez se fez vergonha.
Pegar as roupas depressa. Olhos molhados. Sexo molhado. Vontade de morrer.
— Amanhã você vai embora daqui.
Ainda nem se era gente. Nada se podia fazer. Nem
as lágrimas, nem a revolta. Nada. Era nada. Nem um tiquinho de gente.
— Não vá, Babucha. Eu vou morrer.
Ninguém morre assim de amor. Romeu e Julieta
estão longe no tempo e na distância.
E a carta não diz nada de volta. Não
diz, mas se esquiva de terminar, querendo, se intimidando. Mas toda ela.
Suas três folhas de seda e sua firme letra estão gritando:
— Volte! Volte enquanto é primavera. Enquanto
ainda há alguém aqui em casa.A cadeira de balanço
vazia. Um cachimbo apagado. Um tapete frio. Uma bandeja sem préstimos.
Só as botas ainda percorrem o arrozal. Às vezes vão
para o campo, pisando margaridas amarelas e procuram ansiosamente manchas
no gramado à beira do riacho.
Mas a carta continua no mesmo rítmo. Tudo
vai bem. Muito bem.
E alguém morreu de amor. Não deu manchete.
A notícia chegou um ano depois. Já estava tudo tranqüilo.
É que às vezes a natureza agride e em vez de felicidade traz
desespero, solidão.
— Não vá, Babucha. Eu vou morrer.
Mas tudo estava escrito desde muito antes do sol
existir. E o tempo passou. O arrozal continuou o mesmo. O avô deixou
de desafiar, se entregou simplesmente. A mãe descansou, seu ventre
com ela, nem sequer desabrochou. O gato dormiu para sempre, até
se desintegrar. Na beira do riacho só há o gramado e ele
até se esqueceu das sinfonias. E agora a carta pede para voltar.
Todo esse vazio esperando. Só as botas esperam. Há perdão?
O sol volta todas as manhãs. No mais tudo vai bem. Um abraço.
Papai.
Judith de Souza
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