Zé
Relógio tinha hábitos peculiares. Quem não o desejava
entre os loucos dizia que ele era muito esquisito (mas o pronome e o adjetivo
eram apenas uma maneira diferente de chamá-lo de louco). Mas de
fato ele era bem diferente dos demais moradores da pequena Salto –
um povoado perdido numa árida planície andina, cuja existência
era garantida pela exploração de salitre para as fábricas
de munição da metrópole. Era um tempo de muitas guerras,
as colônias espanholas lutavam pela libertação do domínio
da metrópole e os heróis eram tão abundantes quanto
os loucos. As ruas e os cemitérios também se enchiam de patriotas
mortos. Por ser um povoado estratégico pela exploração
de salitre e pela proximidade das montanhas, esconderijo ideal para os
patriotas, Salto viu-se durante a guerra de libertação assediada
por ambas as forças envolvidas na luta. A excentricidade que distinguia
Zé Relógio do seu povo de ascendência indígena,
paciente e taciturno, não fosse demasiado insólita
passaria despercebida num tempo de acontecimentos inusitados. Estava no
próprio apelido a razão de sua fama: ele carregava sempre
às costas um grande carrilhão inglês num tempo em que
os demais homens portavam fuzis.
Mas em Salto todos condescendiam com Zé Relógio. Pelas ruas
poeirentas ele seguia infatigável dia e noite; o corpo curvado
para diante suportava o pesado móvel enquanto ele dizia a plenos
pulmões, com a força de um pregoeiro que tenta forçar
o melhor lance para a sua prenda: “Arrependei-vos, ó infiéis,
o fim do mundo está próximo; a hora está chegando.
Quem não se arrepender agora, depois será tarde demais!”
A sua confusa crença religiosa, uma mescla heterogênea de
imagens e idéias indígenas e cristãs, aprendida com
os catequizadores jesuítas, previa que na hora do fim do mundo o
seu relógio deixaria de funcionar, ditando o fatal momento da destruição.
Pouco tempo antes – ele descansava o relógio no chão, e com
um ar grave próximo da ira no rosto e os olhos esgazeados, buscava
no relógio e no céu para onde olhava alternadamente, sinais
do apocalipse que corroborassem sua teoria – fatos estranhos acontecerão
como sinal do que está por vir. E ele enumerava cada estigma com
voz incomum para um velho índio, cuja raça é silenciosa
e desconfiada: “o dia vai virar noite, as mulheres honestas vão
fornicar, os animais surpreendentemente passarão a falar e os homens
se desentenderão entre si, gerando muitas mortes e dor.” Esse último
augúrio, apostava Zé Relógio, já estava em
marcha. “Depois disso é o fim!”, dizia persuadido.
O seu relógio deixaria de funcionar na hora exata nem mais, nem
menos!
Zé
Relógio não descendia de família de artífices
construtores de relógios tampouco tinha amor ao instrumento. Na
miserável Salto, é bom que se diga, possuir qualquer
tipo de relógio era quase ostentação. Os velhos
se orientavam pelo sol, pela lua ou pelas estrelas, e quando careciam de
prever algo mais remotamente se valiam das estações chuvosa
e seca para delimitar o tempo. Era uma marcação imprecisa,
mas a vida que levavam não exigia rigor. Conheceram a preocupação
exacerbada das medidas exatas com os europeus, e nem o convívio
de vários séculos eliminou o desconforto de acharem esse
hábito muito estranho. O carrilhão, que parecia pregado
às suas costas, fora resgatado de um navio inglês naufragado
nas costas chilenas com um carregamento de relógios para a colônia.
Uma tormenta o jogara contra os arrecifes bem próximo da costa,
matando a tripulação. Pescadores resgataram quase todas as
peças e a partir daí teve início uma estranha seita
cujo símbolo era o relógio.
Diziam os sectários sob o comando de frei Anacleto, velho religioso
espanhol proscrito da ordem franciscana, que os relógios foram presentes
de Deus que queria seus filhos preparados para a hora final. Todos deviam
dali em diante carregar ininterruptamente o seu relógio para saber
o exato momento do final dos tempos. Nessa hora, não se preocupassem,
os relógios deixariam de funcionar e o mundo seria consumido por
grande hecatombe. Era uma seita mórbida, afinal não tinha
serventia apenas saber a hora exata do fim e não poder antecipar-se
para evitar que ele acontecesse. Consumiam-se à espera da hora que
nunca chegava, não sendo à-toa que todos admitiam e praticavam
a flagelação. Em romaria assustavam o povo pelas ruas de
Salto ou pelas montanhas quando procuravam amealhar entre indígenas
supersticiosos mais adeptos para a causa. Os sons do mecanismo de uma vintena
de relógios de tamanhos desiguais pressagiavam desgraça ao
povo de Salto; quando frei Anacleto e seus seguidores apareciam em qualquer
ponta de rua, os moradores fechavam as portas e janelas de suas casas a
espera de que passassem salmodiando litanias ou praguejando e excomungando
em altos brados a população recalcitrante, chamada ‘infiel’
com todas as letras.
Zé Relógio carregava o maior dentre todos os relógios;
e o tamanho em seu caso não era distinção de posto.
Os demais membros da seita, em busca do fardo eterno mais leve de carregar,
ligeiro botaram mãos sobre os menores relógios. Para ele
sobrou o carrilhão inglês – recusado por todos mesmo com a
exortação de frei Anacleto garantindo privilégios
na eternidade a quem o jogasse às costas –, cuja caixa e pedestal
eram tauxiados em pesado carvalho inglês. Dera grande trabalho resgatá-lo
dos porões do ‘Edimburgh’ e um pescador, hábil no mergulho,
quase perecera na execução da tarefa. Tinha quase a altura
de Zé Relógio, mas os braços fortes e a memória
fraca do mestiço se harmonizaram com perfeição, e
ele rejubilou ao ‘receber a distinção divina de carregar
sobre o lombo o imenso relógio’ nas palavras de frei Anacleto, quase
com certeza ditas para encorajá-lo.
O pesado carrilhão fora entretanto a salvação de
Zé Relógio. Ele andava sempre à retaguarda do séqüito,
vagaroso e curvado ao peso expiatório. Quando as forças coloniais
chegaram a Salto para tentar sufocar o levante, deram de cara com frei
Anacleto e o séqüito de maltrapilhos. Sem entender quem era
aquela gente, pensando tratar-se de patriotas que lhes tramavam ardis,
fuzilaram impiedosamente o grupo. Salvou-se Zé Relógio, porque
vinha cansado e distante, e quando chegou ao local do massacre o mal entendido
já estava desfeito. Desde então a cabeça de Zé
Relógio desregulou de vez. Não pôde sequer aliviar
o pesado fardo; as balas das forças coloniais haviam inutilizado
todos os relógios.
Ele passou a pregar solitário e ainda com mais sectarismo que frei
Anacleto. Na realidade não pregava, apenas representava um teatro
que decorara durante os anos em que fora seguidor do velho frei.
As forças coloniais foram vencidas e o relógio de Zé
Relógio não parava de marcar as horas. A excelência
inglesa atestava uma vez mais a sua fama na máquina incrivelmente
precisa. Não permitir o ilícito da intervenção
humana nos desígnios divinos, era preocupação constante
de Zé Relógio e só por isso ele alimentava regularmente
a corda do mecanismo, voltando a mão para as costas. Tinha a certeza
de que na hora certa a máquina ia parar.
Incrivelmente o carrilhão atestou o fim.
Mas
o fim da vida de Zé Relógio e não o fim dos tempos.
E toda Salto presenciou o fatídico acontecimento. Foi durante a
parada militar em comemoração ao sexto aniversário
da independência. A tropa perfilava-se em seu uniforme de gala na
Praça das Armas à sombra das amendoeiras em um dia com sol
vacilante que ora escondia-se, ora aparecia de detrás de grandes
nuvens. A população emocionada acompanhava o toque dos clarins
e o rufar dos tambores, acenando bandeirolas e flâmulas com as cores
nacionais. Lembrava-se ainda da recente guerra de libertação
e dos patriotas mortos. O alcaide nomeava-os um a um, arrancando aplausos
e lágrimas. Zé Relógio estava entre a multidão.
Carrilhão às costas, presenciava mudo o espetáculo
e as evoluções da tropa no grande pátio de areia.
Os exercícios demoraram toda a manhã, e empertigado ele se
manteve sem descansar no chão o relógio. Aliás, havia
seis anos justos que ninguém o via descansar o peso das costas.
Parecia já não mais senti-lo. Era como uma parte de seu corpo,
talvez uma grande corcunda que a decepção da vida e os anos
de sofrimento lhe avolumaram.
Após um toque longo de clarim, cheio de melancolia, e um rufar marcial
de tambores, um breve silêncio cobriu a praça. O baque surdo
do carrilhão ao chão, vibrando sons diferentes atraiu as
vistas de todos os que se encontravam no local. Zé Relógio,
enfim, desabara com o peso do grande relógio. Caíra imóvel,
de lado, com o braço esquerdo estendido reto para diante e o outro
curvado em noventa graus, sustentando a cabeça.
Houve corre-corre e um grande círculo fê-lo sumir das vistas
de quem estava mais longe. Tentaram reanimá-lo, mas estava morto;
o relógio marcava meio-dia pontualmente, e estava parado. O alcaide
tentou separar Zé Relógio do carrilhão mas era impossível:
estavam unidos firmemente. Rasgaram sua grande bata de algodão e
ficaram estarrecidos com o que viram. Uma estranha e inexplicável
simbiose unia os dois: o corpo de Zé Relógio lançara
ao relógio pele, músculos, veias e tendões, que aos
poucos cobriam a madeira, e o carvalho tauxiado do carrilhão entranhara
nas costas do velho índio finas raízes. Faltava apenas examinar
se seu coração batia no mecanismo do relógio.