ONDE ESTÃO MEUS HERÓIS

             Quando o último operário morreu, Flash Gordon se evadiu de meus sonhos. A nova equipe chegou. Oito homens rudes e fortes. Voltei a sonhar.
            A fábrica fica num local isolado e somos obrigados a um certo confinamento. Relutaram em colocar uma mulher nesta região. Era arriscdo.
            Mas a necessidade de alguém que promovesse condições de higiene os convenceu. Também havia comida para ser feita e estou aqui.
            A nova equipe chegou e voltei a sonhar. Sonhos perigosos. Ou me encontro subindo em edifícios pelas paredes, do lado de fora, agarrada em peitoris, as pontas dos pés sustentadas por minúsculas saliências ou subindo montanhas pelo lado de dentro. Isto me obriga a arrancar terra e pedra com as unhas. mas, vou conquistando o espaço milímetro a milímetro. No mais aquela perigosa cratera sob meus pés, apoiados em pequenos degraus que moldo com as mãos. Então ele chegou. O Mandrake. Fez um gesto hipnótico e eu era Narda, salva pelo herói. Acordo neste ponto, trêmula e feliz. Olho em volta e não vejo meu herói. Apenas homens rudes. É difícil este início. Sou acusada de sonhadora e eles nem avaliam o quanto estão certos. Eles falam assim, meio na brincadeira, sempre que entre duas tarefas me flagram com olhar perdido, bem além das vidraças, mas bem além, tecendo com idéias. Aí eles dizem: — Ela é uma sonhadora — e sacodem a cabeça em desaprovação, um riso torto na boca, como se me considerassem um caso perdido. Às vezes tenho vontade de falar. Dar o nome de muitos que sonharam. Gente importante feito meu pai, minha mãe e o Tico, que foi meu primeiro namorado, além, é claro, de J. B., que eu considero o melhor diretor que nossa fábrica já teve. Tenho vontade de dizer mas fico bem quieta. Penso em Mandrake, entretanto, ele está um bocado longe, dentro da noite, nos quadrinhos de jornal, sei lá. Por enquanto está longe.
            Desde que descobriram que Mandrake é meu herói eles brincam muito comigo. Descobriram rápido, porque afinal era mesmo para descobrir. Remexeram minhas coisas e lá, bem no fundo de uma gaveta, arrancaram as tirinhas de jornal que coleciono há algum tempo. A partir daí começou a provocação: — Narda pra cá, Narda pra lá. No telefone aquela voz perguntando por que Mandrake com tanto cara ali por volta. A brincadeira que começa simples ganha proporções chegando a um ponto em que me chamam de Narda com a maior naturalidade e as brincadeiras continuam. Eles promovem situações difíceis tentando provar que o Mandrake não está nem aí comigo. Foi assim quando me trancaram no frigorífico. Fiquei lá por um bom tempo até que abriram a porta e perguntaram, como quem não tinha nada a ver, o que eu fazia ali e por que o Mandrake não viera.
            Outra vez foi na área dos fornos e em outra ocasião fiquei presa numa sacadinha minúscula pela noite inteira. Era verão e choveu muito. No dia seguinte, abriram a pequena porta e com um ar de susto me olharam toda encharcada e riram, mas riram dando que, entre dois espirros, cheguei a chorar.
            Você aí, Narda? Que horror!
            Afinal, ao perceberem que a minha paixão por Mandrake não sofria o menor abalo ficaram ainda mais curiosos e interessados.
            Foi de repente, muito de improviso que eles se puseram a ler os quadrinhos furtados de minha gaveta e da mesma forma como eu me julgava a heroína, cada um deles passou a julgar-se o herói da história. Eu assistia a mudança nos hábitos, nas palavras, nas idéias. Foi aí que meu comportamento se alterou. Agora, era eu quem criava situações perigosas, só para vê-los em ação. Eu sempre me saía bem, estava tão treinada em armadilhas, mas o mesmo não acontecia com eles. As mortes se sucederam ou porque se arriscavam em tarefas impossíveis ou por se matarem entre si. Impossível que convivessem bem, todos tentando parecer Mandrake. Magros, gordos, altos, baixos, louros e negros, todos querendo parecer Mandrake. Era muito divertido. Bem depressa só restaram dois e com uma faca na mão direita, um gesto hipnótico na esquerda, disputaram o direito de ser o herói.
            O sobrevivente tentou uma sucessão de gestos hipnóticos que me fizessem aparecer. Tudo em vão.
            Escondida pelos corredores, às vezes o presenteava com uma risada. Ele corria de um lado para outro e eu tornava a rir, já de outra direção.
            Quando agarrada à corda me pendurei no teto da área das caldeiras, lugar quente e perigoso, foi que ele tentando me salvar, caiu e deu no que deu.
            Fiquei só. Posso dormir, sonhar. Mas Mandrake fugiu dos meus sonhos.
            Na Central souberam dos mútiplos acidentes e providenciaram a vinda de uma nova equipe. Também já comecei a sonhar com o Fantasma, a colecionar tirinhas do jornal. Presumo que vão me chamar de Diana e tudo irá repetir-se. Espero ansiosa pela chegada deles. Mas aí sucedeu um fato estarrecedor: vieram apenas mulheres. A direção do núcleo Central, baseada em minha sobrevivência, concluiu que somos mais cuidadosas e menos propensas a acidentes de trabalho.
            A notícia fez com que o Fantasma partisse e me proponho a morrer de tédio. E mais do que isto. Naqueles sonhos em que subo edifícios e pelas montanhas não vejo mais quem possa me salvar.
            Os resvalos e as mãos estão prestes a soltar-se. Vejo o instante em que não poderei mais me manter e que não vou acordar a tempo. Aí será o fim. Os meus heróis se foram e estou só. O grito se perde no vazio. Sou eu gritando: — Onde estão meus heróis?

Regina Benitez

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