VELHO

            Quando eu era criança, adorava roubar balas no armazém da esquina. Até que meu pai teve que pagar a conta de seis meses de balas roubadas. Eu não sabia que o dono do armazém via tudo, ele foi desonesto, devia ter avisado. Saí perdendo: fiquei de castigo e, envergonhado, tive que mudar o caminho do colégio, o que me obrigava a dar uma volta enorme.
            Contei essa história pros meus netos, omitindo, claro, a parte do castigo. Botei aí um embate: meu pai se recusou a pagar o prejuízo, me deu uma bronca daquelas e nunca mais tocamos no assunto.
            Essa versão me pareceu perfeita para um respeitável avô.

            Meu filho telefonou dizendo que precisava falar comigo, urgente. Pensei, deve ser dinheiro. Me acostumei com isso de procurarem para pedir dinheiro, até não me incomoda, é uma oportunidade de conversar, de ouvir o quanto estão preocupados com a minha saúde. Marcamos no Centro, íamos almoçar juntos. Quando cheguei ao restaurante, ele e a mulher estavam sentados e, pela maneira como ele me cumprimento, estirando a mão, para manter distância, tive um mau pressentimento. Meu peito apertou, sentei preocupado, sem atinar com o que estaria acontecendo. Ela foi tão rápida          quanto impiedosa: O senhor tenha a bondade de me repetir aquela história dos roubos que o senhor contou para os meus filhos. Ela sublinhou bem o senhor, apontando, acusadora. Não lembrei de história alguma.
            Meu filho tentou contornar, pediu a ela calma, meu bem, ela respondeu, meu bem é o cacete. A coisa era séria porque minha nora não falava assim nunca, para ela cacete era pesado, muito. Pois bem: eu quis saber se já tinham feito o pedido, ela se alterou mais, o senhor — dedo em riste — está debochando, não respondeu à pergunta dos roubos, se o senhor foi ou é ladrão, não narre essas coisas como fatos heróicos para os meus filhos; se não pode ajudar na educação deles — e nem quieto — ao menos não atrapalhe! Aproveitei a pausa e convoquei o garçom. Pedi uma cerveja e o couvert. Foi o bastante.
            Meu filho me perguntou se eu estava ficando maluco. Respondi que não, apenas fui convidado para um almoço, não tive tempo de sentar e já havia um questionário para responder. Nos olhamos. Nossos olhos sabiam que jamais eu faria seja o que fosse para prejudicar meus netos. O mesmo olhar me contou que estava difícil para ele resolver a situação. Nisso, a cerveja chegou. Servi um copo e ofereci, dizendo: primeiro as damas! Ela se levantou e foi embora. Meu filho bufou: Francamente, papai!, e saiu atrás dela.
            Pedi moqueca de peixe, numa clara desobediência às recomendações médicas. Comi o pudim lembrando da minha casa, do meu pai, e aí, sim, me veio o roubo das balas. Achei graça de tanto por um pote de nada. Paguei a conta, entrei num táxi e fui direto para o escritório de meu filho, eu precisava esclarecer que a história era a mesma que ele estava cansado de saber, até reclamava quando eu repetia, dizia pai, você já contou isso milhares de vezes, muda o disco!
            Meu filho estava em reunião. Sentei, li uma revista, li outra, me distraí, e quando perguntei se ia demorar, a secretária me confessou que ele não queria me receber, por que ela não sabia, mas ele estava no telefone, com a namorada, fazia um tempão.
            Já era tarde, fui embora. Resolvi passar no Grajaú, para ver o outro filho, que estava desempregado. Eu queria contar a besteira que armaram por causa da história do roubo das balas mas meu neto mais velho me passou um bilhete, eu guardo até hoje esse bilhete: "Vô, não toca no assunto das balas, meu pai ficou p. da vida e disse que você está caduco, pra gente nem escutar o que você diz. Fica na tua, tô contigo, vô!".
            Saí pela porta dos fundos. Quando cheguei em casa, o telefone gritava como louco: era o filho desempregado perguntando porque saí daquele jeito, se eu estava caduco. Pela primeira vez na vida mandei um filho à merda.
            Não conseguia falar com minha neta adorada. Pedi ao imbecil do pai dela que desse um jeito de eu ver a menina e ele disse que a mãe da menina não ia aprovar.
            Como ele estava desempregado e precisava que eu pagasse a conta de luz, negociei: ele trazia minha neta e eu pagava a conta. No dia seguinte pude ver a minha neta, a menina dos meus olhos, e fiquei com ela enquanto ele foi ao banco. Ela me contou que estavam prevenidos de não ouvir nada do que o vovô dissesse, porque o vovô está caduco, isso é coisa da idade. Minha revolta foi tal que não pensei nas conseqüências: quando meu filho voltou, sorridente — afinal , a maldita conta! — desabei em cima: fossem todos à puta que os pariu, que eu não era velho caduco na hora de pagar contas, de agora em diante, não iam me encontrar, eu ia sumir, ninguém vai me achar nunca mais!.
            Falei de supetão, sem pensar.
            Minha neta chorava e pedia não some não, vovô, eu não quero ficar sem você. Aí meu filho deu-lhe um bofetão, o covarde!, não era macho para dar em mim. Perdi a cabeça, meti-lhe a porrada. Nós estávamos no Bob's da Saens Peña, chamaram a polícia. Minha neta se agarrou comigo, pedia não levem meu vô, ele é meu vô! Fomos para a delegacia, a menina chorava, agarrada em mim. O escrivão ia me autuar por agressão, mas expliquei que era pai e podia enfiar porrada no meu filho quando quisesse e bem entendesse. Os tempos mudaram, disse o escrivão, pedi que avisasse isso a meu filho, que deu na menina. O frouxo desmentiu, disse que eu estava velho e caduco. Enfiei-lhe porrada ali mesmo na frente do escrivão. Agora tá certo — falei —, agora, sim, dei e dou: corja de frouxos, o mais velho — idiota!, no meu tempo, amante era a secretária, o imbecil ficava horas no telefone com a amante, não tinha coragem de cantar a secretária, não precisava pegar mulher na rua. Foi um terror porque minha neta adorou a fofoca. O escrivão não entendeu nada e aconselhou que fôssemos resolver o problema em casa.
            Saí repetindo: está havendo falta de vergonha na cara de todos vocês que se deixam envenenar pelas mulheres, não defendem o pai de vocês, porra! Nem sei quantas vezes repeti isso. Fui me empolgando, nunca tinha falado palavrão na frente dos meus filhos, e o que adiantou? Nada. Agora, tome palavrão. A netinha ria, eu olhava para ela e continuava...
            A menina contou pros irmãos e eles contaram pros amigos que o avô deles era um espanto.
            Na semana seguinte, Rui, o neto mais velho, telefonou pedindo para eu responder a umas perguntas pro trabalho que ele estava fazendo. Marcamos na casa de um colega dele, o Rafa, no Rio Comprido.
            Cheguei lá e tomei um baita susto. Todos os meus netos estavam presentes, e fizeram uma faixa assim: "PRO VÔ MAIS E MAIS PIRADO E AMADO DO UNIVERSO".
            O chão ficou macio como algodão-doce. Perdi a voz. Sentei. Pedi um copo d'água. Perguntaram se eu queria um médico. Praguejei: que todos os médicos fossem à merda!, eu estava emocionado, era o homem mais feliz do universo. Eles batiam palmas: vai, vô, manda mais!
            Continuei: cerveja!... silêncio, eu falando, cerveja!... silêncio, eu falava; um silêncio!... cerveja eu, silêncio...

Vera Barros

« Voltar