Esta é a história
verdadeira de Chué, a cadelinha pistoleira.
O nome veio do medo,
um medo doentio dos homens. Alguém, algum dia, lhe pisou nos pés
e chué! chué! chué! foi o que se ouviu, um ganido
esganiçado, longo, doído e feio, feio. E Chué, Chué
se chamou.
Todos riam do ganido
feio da Chué, e ela gania mal sentia a presença de gente.
Porém mais feio que o seu ganido era a Chué. Era feiosinha.
Cadela vira-lata, branca e preta isto é, onde tinha pêlos.
Era uma desgraça a bichinha, pelada e coberta de feridas. Nas
pernas, nas anquinhas, nas costas, era ferida só. Uma bicheira.
Os bichos comendo a pelanca mole da Chué. Em carne viva, a mosquiteira
voejando.
Mas o mais feio
provocava caçoadas nos homens e engulhos nas mulheres era a cabeçona
da Chué. Muito grande, desproporcional ao corpo miúdo, os
olhos saltados, orelhas em tiras, nariz fendido ao meio, pus gorgolejando
era uma cabeçona de meter medo. Todo um ar de sonsa, a Chué
não devia ter muito miolo não.
E gania chué!
chué! chué! mal via a gente. Dobrava uma esquina, apontava
noutra, perdia-se no mato. Tem parte com o Cão, a minha avó
dizia. É o Coisa Ruim,
todos diziam. Nojenta, eu murmurava, mas
com um sorrisinho muito meu eu queria querer bem àquela coisinha
perdida no mundo. Esse mundo não era dela, cruel demais para essa
pústula ambulante, malcheirosa, foco de doenças,
odienta. Mas ela existia, oras. Matá-la? Se ela nem chegava
perto das pessoas! E como?
Sumia-se de vista, no vento, no mato. Nem a víamos pressentíamos:
ela nos rondava, o seu olho mau, de ódio. O olho. Semelhava que
tinha um olho só; ora o direito, ora o esquerdo uma posta de pus.
Um olho, e todo o ódio do inferno nesse olho.
E sobrevivia.
Comer? Todos a detestavam, a escorraçavam.
Ela detestava a todos.
Decerto comia o que fuçasse no mato. Era bicho do mato fique
por lá! Dava um sumiço, nós a esquecíamos
até uma saudade, de mansinho mordia a gente a abelhinha da saudade.
Um sentimento reprimido. Não era muito verdade que a detestávamos.
Era o nojo. A cara de débil mental. Babando ódio e doença.
Tínhamos pena. Estou certo, era muita pena que sentíamos.
Ninguém confessava, era como uma vergonha, mas que dó!
Aposto que, madrugadinha, o Tião do Açougue lhe jogava um
osso escondido. A velha Gertrudes, torcendo o nariz, bem que lhe enchia
uma latinha de arroz-com-feijão. Minha avó Sebastiana, a
vó Chana vivia espreitando no portão à toa, à
toa , algum pouco de comida na mão. Não, a gente não
é de todo má. Nem a gente de nossa cidadezinha esquecida
de Deus.
A Chué dava
um sumiço para espicaçar uma saudadezinha na gente? e
voltava, sempre voltava. A mesma feiúra, cabeçona caindo
de lado, um olho purulento, no outro um brilho azedo de ódio. De
longe, arisca, terrorificada, mas anunciando: Eu existo. Isso é
importante: essa coisa fedendo, a bicharia comendo-lhe a carne-viva, essa
coisa existe. E mais: essa coisa vive! Nós nos mordíamos
de ódio. É uma desgraça,
é a maldição. Um o Luisão?
caçoava; outro o Juno? falava em esquartejá-la. Mas
quê! Se a amávamos! Num segredo. Se ela era da família!
Numa cidade pequena todos são da família até os
cachorros, os gatos, os cavalos, até a Chué. Vai tempo, vai
tempo, não é que a Chué se pegou de amores pela Ritinha?
A Rita Zarolha, a Rita Boba da Tia Felizberta. A infelicidade
da vida da Tia Felizberta. Tonta como a Chué, a mesma cabeça
grande, quase sem cabelo metade pelada, metade coberta de um pêlo
preto, feio. Era feia como a Chué, mas limpinha. Só falava:
Ah, é! Ah, é!
quase como a Chué, mas sem o medo da Chué, sem o olhar
de ódio da Chué. Olhava torto, sorria torto, era toda torta;
ódio é que não tinha não. A Tia Felizberta
cansou de lhe amarrar um lenço na cabeça qual nada! A Rita
não tinha vergonha da cabeça preta e vermelha, preta
e amarela, e azulada a metade pelada da cabeça
mudava de cor. A gente é que tinha vergonha: desviava os olhos,
não fosse parecer pouco caso ou, quem sabe, mostrar pena. Mas,
como ver com olhos normais o que era um estrupício do destino? E
a gente respeitava a Tia Felizberta, o Tio Antonhão, marido dela:
não fossem se ofender.
Mas a Chué
se pegou de amores pela Ritinha. Duas tontinhas, duas tontonas. Dois aleijões
do demônio. O Lusco-Fusco viu, o Juno e a Quitéria viram,
eu próprio vi as duas andando pelo mato. Pois a Rita deu de andar
sem rumo como a Chué , se sumir no vento, no mato como a Chué.
Gêmeas do olho negro da sorte, se encontraram e o amor ou alguma
coisa sem nome, como o amor, uniu as duas. Juro, eu vi: uma olhando nos
olhos da outra, um feitiço que só o amor. Eu vi, a Chué
dizendo:
Chué! e a Ritinha
respondendo:
Ah, é! Um sorriso
bom, feio naquelas caras feias, mas bom como um sorriso bom. Passarinhos
cantavam, um bem-te-vi anunciou: festa linda de se ter visto. O ódio
da Chué evaporou-se.
O sol brilhava na lagoazinha
do Zé da Velina a Chué e a Ritinha pularam
n'água, a Ritinha de roupa e tudo. Nunca vi cachorra gostar assim
de água era o brilho da alegria; a Ritinha, a Chué, duas
irmãzinhas.
Mas eu disse uma palavra
feia, preciso explicar. Não precisava ter sido, o tão triste
acontecido como se fosse a própria obra do demo. A palavra
aleijão do demônio foi o
Padre Gusmão quem falou. Não devia,
não precisava ter falado. Dois bichinhos tão purinhos, na
primeira alegriazinha. O Padre, mal chegado na cidade, quis armar um exorcismo.
É coisa do diabo,
eu vou expulsar o diabo dessa menina!
Nem tinha sabido da Chué. Soube e não foi outra a pobre
da Chué:
Tem parte com o Capeta!
É o diabo essa cadela. O diabo não é o Cão?
O Cão, a Cadela, ponham sentido no que eu digo.
Essa, an? Chué? tem cara de
bicho, de bicho
normal? Não, isso aí é a filha do Cão.
É a cadela que o diabo mandou ao mundo. Vejam, meus filhos, é
a imagem verdadeira do diabo. Essa menina, meus filhos, não vai
ter paz enquanto nós não mandarmos para as profundezas do
inferno esse diabo em forma de cadela. Vade retro! Vade retro! Morte à
Cadela! Às armas, filhos de Deus. Morte à Cadela do inferno!
Pegamos em armas
com a religião não se brinca! Embora não entendendo
bem. Não sei afirmar se algum de nós acreditou no Padre.
Nem sei dizer se o Padre acreditava. Aquilo era doideira pura. O Padre
estava louco varrido. Só se fosse encenação, o Padre
fazendo teatro com a gente. Mas ninguém demonstrou, não deu
mostras. Uma fúria divina ou o diabo se apossou de toda a cidade.
Afinal, era só uma cadela. E ninguém de nós tinha
definido direito o ódio ou o amor por aquela deformidade, pelo avantesma
daquela cadela.
O Padre Gusmão
era normal da cabeça? Também, talvez eu esteja exagerando.
O que vem em seguida é que não foi exagero. O Padre acertou
um tiro na Chué, no quarto traseiro. A
Chué gritou:
Cáin! cáin! cáin!
Não soltava mais
o costumeiro chué! chué! chué! Arrastava a perna esquerda:
Cáin! cáin!
a perninha dura, sangrando, um pedaço de carne em brasa. E desapareceu.
Todos sabiam: ninguém a acharia, como sempre. O Padre, em sua fúria
sagrada, não descansou:
Eu mato a Cadela do Inferno!
A cadelinha era que
padecia um inferno de dor.
Cáin! cáin!
o ganido se sumindo no pó da estrada. Cáin! cáin!
dentro da gente. Chué, onde estaria? A gente podia ver a bichinha
na agonia. Embaixo de uma cerca que dificuldade atravessar! O quarto
preso numa tábua, num arame farpado. Entalada nas taquaras da cerca,
as ferpas penetrando nos nacos de carne sangrenta, à mostra. Teria
se encostado no canto de algum mangueirão, esperando
a morte? Imagens de morte dançariam diante de seus
olhos. Os olhos que viam névoa só uma nuvem de névoa,
pesada, de chumbo. Um zumbido de abelhas, um milhão de abelhas querendo
lhe entrar pelos olhos a dentro. Que pensaria a cadelinha, se acaso pensasse?
Talvez nada. Decerto que nada. O inferno da dor, mais nada. A dor maior
que o mundo era tudo que existia.
A Tia Felizberta não
tinha ligado para as histórias do Padre. Estranhou: Artes do demônio?
Não navegava nessas águas. Seu pensamento não viajava
tão longe. A filha era esquisita? Um pedaço de horror? Vontade
de Deus, sei lá. As coisas acontecem, não podia ir contra.
Demônio? A filha é um anjinho de bondade. Só a feiúra
de ruim. Asquerosa? Nem tanto. Boazinha, um sorriso
feio, mas sorriso de quem gostava. Se era boba? Muita esperteza,
para quê? Até que tinha um jeito feliz.
Tio Antonhão se fechava em copas:
Oras, oras! Pau que nasce
torto direito, nem morto! diria, se conversasse com alguém.
Mal nascida a Ritinha, horripilante ele se desesperou. Mas foi se
acostumando: a filhinha sorria oras, nem tudo ia mal. A Felizberta
respondia o sorriso, a Ritinha dizia:
Ah, é!
Ele também sorria
e repetia:
Ah, é!
Veio o Padre, Tio Antonhão
deu de ombros. Não ia curar a filha não. E a filha a sua
filha! era aquilo ali. Não queria mudar não. Oras, oras.
Foi pensando essas coisas
que a gente abandonou o bruto do Padre caçando sozinho a cadelinha.
Mas urubu achou? Nem ele o urubuzão gordo, amargoso como o diabo.
Pois é, a gente deu de pensar essas coisas: mancomunado com o diabo,
só se fosse isso. E não era coisa do Tinhoso a idéia
que inventou? Inventou e executou. Palavra: a gente, todo mundo virou as
costas para o danado do Padre. Não, aquilo era demais.
Inventar de seguir a Ritinha, isso já era baixeza. Que
ela, uma hora ou outra, ia acabar dando com a cadelinha Chué; que
só ela ia achar a Chué é certo, é certo.
Mas a menina tem sentimentos. Será que o Padre não via que
a menina tem sentimentos? É tontinha, mas tem sentimentos. E achar
a Chué, por quê? Deixasse a bichinha morrer. Nem morrer em
paz não se pode? Ou queria matar a Ritinha junto? Por que essas
coisas acontecem a menina podia bem não agüentar a dor. Ela
não conhecia o sofrimento a primeira vez, podia ser fatal. Não
conhecia a crueldade podia ser a última.
Mas as coisas não
correram conforme. O Padre não contava com a esperteza da Ritinha
Boba. A sabedoria instintiva a Ritinha zanzando, zanzando, de um lado
para o outro, e cortava volta, se embrenhava por entre os pés de
arranha-gato, saía de um capão de mato, logo entrava noutro
o eterno sorrisinho tonto na cara monstruosa, rodopiando em círculos.
Barata tonta:
Ah, é! vinha
dar no mesmo lugar. O Padre apalermado. Não acompanhava a bobinha,
a barriga muito grande, o corpo judiado, os bofes de fora, a batina suja,
rasgada atrapalhando. Deu por si, se viu perdido. Girou horas onde?
em torno de si mesmo. Mergulhou num brejal:
Agora vou morrer! água
até o pescoço, lama, limo,
erva podre. Um cheiro de bicho morto:
Ai, que eu vou apodrecer
aqui!
O Padre, nem soube como,
se viu deitado de borco numa clareira. A carícia de uma réstia
de sol, e o Padre chorando. E o Padre fedendo:
Cadela de Satanás!
Está me perseguindo, está me perseguindo. Uh! seu nome é
Legião! o Padre procurando. Apurou os ouvidos:
Cáin! abafado
o ganido do Maligno. Imaginou ouvir. Não podia ser! Levantou-se
devagar. Tremia, lívido. As armas? Perdera a cartucheira.
A pistola? Cano longo imunda, barrenta. Funciona? Enxugou dois
cartuchos com as mãos, carregou-a.
Late, demônia!
A cadela, moita. Quietinha
como o raiozinho de sol no nariz do Padre. Estaria ali? O Padre segue o
brilho fino do sol na folhagem rala da clareira. Um pé de inhame
ei-la! À beira d'água, mortinha dura, a rigidez de um
cadáver, só podia estar morta.
A Rita vinha chegando,
com a Tia Felizberta, o Tio Antonhão, eu, o Lusco-Fusco, o Zezão,
o Tonho da Narda do Moinho. A Rita ensaiara uma vez, uma vezinha uma
lágrima, a primeira. Ouvimos o tiro, num susto. Corremos.
O Padre enganchara
o pé mole de pavor, numa raiz. A pistola engatilhada. A pistola
explodiu os estilhaços, o cão na testa do Padre, fulminante.
A cadelinha Chué
nem teve força para se assustar, só acordou. Não estava
morta não; e nem morreu. O Padre é que se assustou da vida
sem nem piscar, o olhão mau saltando fora das órbitas.
Chué estranhou o espetáculo, nunca vira. Conhecia
o sangue, miolos deu uma lambidinha. Bom! Estava fraca, aquilo ia bem!
Pouquinho. Inocente, se reanimou com o sangue do seu matador. Ressuscitou.
A Ritinha pegou-a
no colo, beijou-a. Vimos o sangue na boca da Ritinha. Não era repugnante.
Talvez ela tenha lambido os beiços, talvez tenha gostado. Alguma
coisa, é, alguma coisa mudou. A Rita nunca mais foi
a mesma. Nem a Chué. Uma luz de inteligência bateu nelas.
Nem sei se foi para melhor: a Rita nunca mais sorriu. Nunca mais disse:
Ah, é!
Nem a Chué, o ganido:
Chué! nunca mais.
Nem teve mais medo. Hoje anda com a Rita na cidade, cabeça
erguida. É uma cabeçona feia, mas erguida.
A Rita e a Chué andam juntas,
muito sérias.
Senhoras respeitáveis
assim nós as respeitamos.
A Chué foi chamada
de cadelinha pistoleira: nós a encontramos com as patas sobre o
revólver atirara no Padre? Cadela mocha cadelinha pistoleira,
com respeito.
O Padre o Capiroto?
Vai ver que é uma paróquia muito afastada de
Deus, a nossa. Nenhum, ninguém perguntou
notícia do Padre Gusmão. Não sei não. Diabo
não há mas tem coisas estranhas a nossa vidinha, isso tem.
E tem o dia-a-dia
continuando. A Rita:
Ah, é! nunca
mais.
E a cadelinha pistoleira:
Chué! nunca mais,
nunca mais.
Caminham as duas damas,
orgulhosas, devagar rumo ao sol poente.
Boa tarde, minhas senhoras.
Foi uma grande honra conhecê-las.
José Carlos Mendes Brandão