Era dobrar a esquina para desdobrar o passado. A vida feita de plissês, cuidadosamente engomada. Dobras sobre dobras, sanfonada, emitindo um acorde silente. Ruídos de interiores barrocos. De acordeom. O fole sopra as lâminas metálicas da palheta. A máquina fotográfica aproxima e afasta a objetiva da chapa fotográfica. Registra. Fixou o homem de cabelos grisalhos e inglesado, óculos de aros arredondados, ao lado de sua mulher, saia lisa até os joelhos e um lenço protegendo a cabeça. Imagens. Máquina alguma registrou o ato na penumbra criada pelo pavio que flutuava em óleo. São noturnas. Momentos táteis que só uma máquina mística registraria em forma de energia. A mulher carregou a culpa de ter mostrado o calcanhar para o vizinho. Foi sombra enclausurada, até a morte. Nenhum Aleijadinho esculpiu as curvas incomuns, originais e excêntricas desse silêncio.
O interno e o externo... O homem que passa na rua não tem nada de fotografia. Ele sua e respira com dificuldade. Verte pavor. Os olhos espiam cada ângulo, janela e porta da cidade. Onde a saída? Chama a si todos os olhares e desaparece. Entra na primeira porta. O som é o de igreja. Pisar no templo. É preciso muito silêncio para Deus ouvir os pensamentos. A luz indireta vem de orifícios invisíveis. Desliza sobre o marrom-vermelho dos tijolos à vista. É olhar. São sombras, o homem e a mobília. Ouve-se o roçar de metal em madeira. Os olhos do homem pesquisam o peso do ouro. A fome é terrena. Anjos nunca se refletiram em espelhos. São como fantasmas. Também não devem ver as feridas das injustiças. As maçãs do rosto do homem lembram cúpulas, inflexões da miséria. O peso da fome movimenta o ar no estômago. Ouve-se um ruído cavernoso que nada lembra o de um órgão. Soubesse do abditório...
Pega ladrão! O grito não vingou. O personagem anônimo e fugitivo tem uma chaga que não cabe em um conto. Transbordaria qualquer moldura, mesmo que usássemos frases e parágrafos cheios de curvas. Pouco importa. Fizeram de conta que não o viram entrar na igreja. Continuaram pelas esquinas da metrópole. Da cúpula da cidade, um festim libidinoso lambe a porra dos homens. Paro para ver o quadro que o pintor expõe sem receio. Observo as pessoas que passam. Pedras-sabão. A manivela do realejo gira o cilindro denteado. Ninguém pára para ouvir. O periquito retira um pequeno papel azul da gaveta. Qual a sina? Basta puxarmos a memória para desdobrar as desoras. Até o fecundado. Desconhecidos, o início e o fim.
A mulher que passa deixa a barriga inchada à mostra. O vestido bufante, o rosto inchado e as pernas abertas. Prenhe, cheia de curvas, umbigo retraído, sem janelas. No silêncio flutua o ovo. Multiplica-se. Criação alguma admite vazios. Das dobraduras orgânicas às circunvoluções do cérebro nasce a metáfora do criador. Entre ruídos metálicos e homens fantasiados de branco. O hospital com largos corredores, passos frágeis de freiras, pé direito alto, cúpulas côncavas e tijolos à vista. Alguém toca cravo na capela. O cravo no quarto foi um presente. A criança é um anjo de pé torto no décimo andar do prédio. A mãe, uma madona, observa os pecadores nas ruas. Alguém grita a bala perdida. Sirenes. Carros de polícia e ambulâncias. Gritos e cantos gregorianos. Música profana. Dobras ao infinito. Mallarmé... E agora não há mais do que sombra e silêncio.
Carlos Pessoa Rosa