O DESTINO

          Maurício sentou na última poltrona do avião. A do lado estava ocupada por uma linda mulher, mas ele nem reparou nisso. Estava acabrunhado e logo após a decolagem fechou os olhos e começou a pensar em seu destino. Tinha tudo para vencer na vida mas o destino parecia estar contra ele. Era filho de um casal de classe média que o criara com todo o carinho mas sem exageros. Ele não quisera seguir a advocacia, como o pai. Preferira a engenharia e se formara havia pouco tempo. O futuro lhe parecia promissor. De repente porém o seu mundo desabou. Perdeu os pais e a única irmã num desastre de automóvel e se viu sozinho sem saber muito bem o que fazer da vida. Como era moço, alto, moreno, simpático, bem educado e com uma excelente formação acadêmica, certamente não lhe faltariam oportunidades. E realmente assim foi. Preferiu a oferta de um amigo de Manaus. O emprego era ótimo, bem remunerado, e em um setor no qual ele se especializara. Ouro sobre azul. E tinha a vantagem adicional de permitir-lhe sair do Rio de Janeiro, mudar de ares, viver na Amazônia que sempre o fascinara. O destino voltava a lhe sorrir. Agora era só uma questão de tempo. Logo encontraria a moça de seus sonhos, casaria e se dedicaria a cuidar dos filhos. Sonhos muito simples porque ele não era ambicioso. Lembrava, com saudade, o que seu pai costumava dizer: "A felicidade não viaja nem de primeira nem no porão. O ideal é a média". Para seus pais fora realmente assim. Viveram felizes, sem sobressaltos, criaram os filhos tranqüilamente e morreram juntos, sem conhecer o sofrimento. Ele concordava com as idéias do pai. Só que a metáfora agora deveria ser aérea e não marítima. Entre a primeira e o porão havia as classes econômica e executiva. Ele não era ambicioso, mas preferia a classe executiva...

         O problema dos sonhos é o despertar. O de Maurício fora traumático. Seu amigo vendeu a empresa e os compradores o demitiram sumariamente. Nova reviravolta do destino. Agora ali estava ele de volta ao Rio, melancolicamente, na classe econômica, e desempregado. Os devaneios de Maurício foram bruscamente interrompidos pela voz do comandante nos alto-falantes do avião:

          — Senhores passageiros. Quem lhes fala é o Comandante Martins. Por favor, permaneçam sentados e apertem os cintos de segurança. Estamos com um pequeno problema em uma de nossas turbinas o que provocará forte turbulência. O problema não é grave e está sob controle, mas devemos observar rigorosamente os procedimentos de emergência. Nossos atendentes são especialmente treinados para lidar com situações como esta e lhes prestarão toda a assistência necessária. Sigam suas instruções com exatidão e presteza. Muito obrigado.

        Maurício olhou pela janela e ficou pálido. Um grosso rolo de fumaça se desprendia da turbina. A moça a seu lado estava mais pálida do que ele. Agarrou sua mão freneticamente e perguntou:

         — Moço, nós vamos morrer?

         — Nada disso, menina, fique calma. Para mim até que morrer de uma vez não seria tão ruim. Minha vida desandou tanto que eu nem sei se quero continuar vivendo. Mas você, tão moça, tão cheia de vida, ainda tem muito o que aproveitar. Mulher bonita assim como você não morre.

         — Moço, pelo amor de Deus, isso não é hora pra paquera. O que é que nós podemos fazer? Me ajude.

         — Não estou paquerando não, eu também estou morrendo de medo. É que só agora eu reparei como você é bonita.

         — E o que adianta minha beleza, se nós nos espatifarmos lá em baixo?

         — Calma, menina. Ninguém vai se espatifar em lugar nenhum. Esses pilotos são treinadíssimos e os aviões modernos têm recursos que a gente nem imagina. O pior que pode acontecer é termos de ficar uns dias lá em baixo, aguardando o resgate.

        — Mas você já viu a cara de floresta? Parece um mar. É capaz de ter até tubarão...

         — Aí até que seria bom. Ficaríamos famosos como descobridores dos primeiros tubarões da Amazônia...

        Maurício estava brincando apenas para tentar ajudar a moça. No fundo estava apavorado. O avião perdia altura rapidamente e não parecia haver qualquer esperança de salvação. Ele não era muito religioso mas começou a rezar fervorosamente. Esperava salvar pelo menos a alma. Pouco depois o avião começou a roçar a copa das árvores e por fim caiu de todo. O barulho era tremendo. Parecia o fim do mundo. De repente tudo ficou silencioso. O avião se partira em dois pedaços. A cauda, com as duas últimas poltronas, ficara, miraculosamente, presa no topo de uma árvore. A parte da frente, com todos os outros passageiros e os tripulantes, despencara em um barranco de mais de trinta metros de altura e se espatifara lá no fundo. Não sobrara nada nem ninguém inteiro naquele monte de ferragens retorcidas. Só Maurício e sua companheira estavam vivos e ilesos. A primeira coisa em que ele pensou foi na ironia do destino. Salvá-lo justamente quando ele mais nada esperava. Isso entretanto talvez fosse um sinal positivo. Afinal, estava são e salvo e em companhia de uma garota bonita como aquela. Os dois ficaram calados e imóveis mais de meia hora, esperando que seus corações parassem de galopar. Maurício foi quem se recuperou primeiro. Respirou fundo, sorriu, e falou:

         — Eu não disse que moça bonita não morre? Obrigado por ter me emprestado um pouco de sua sorte.

          — Você chama isso de sorte?

    —Lógico! Estamos vivos, sem qualquer ferimento, e você nem amassou o vestido. Aliás, você até parece uma dessas modelos posando para uma foto exótica: "A Bela e a Floresta".

    — Mas eu sou modelo. Fui selecionada por uma das maiores agências de publicidade do mundo e estou (ou melhor, estava) a caminho de New York.

 — Que ótimo. O resgate não deve demorar. Se fosse só um João Ninguém como eu, o resgate era capaz de vir a pé. Para você eles na certa mandarão um helicóptero.

 — Como é que você ainda pode brincar numa hora dessas? Vamos tratar é de descer daqui porque eu não tenho vocação para ficar empoleirada como uma arara...

        Os dias seguintes não foram nada amenos. Só em filmes a floresta é hospitaleira. Do chão nem se via o céu, o calor era insuportável e eles já estavam em frangalhos, picados por milhares de mosquitos e arranhados por milhares de espinhos. Fome não sentiam porque a dispensa do avião ficava justamente na cauda e eles tinham podido carregar boa provisão de biscoitos e frutas. Já estavam porém começando a desanimar. Como eles poderiam dar algum sinal de sua localização para as equipes de resgate? Nem a fogueira que haviam conseguido acender adiantara. A fumaça se espalhava pela densa copa das árvores e certamente não seria percebida por quem estivesse sobrevoando a mata. Seu único consolo era ouvir o radinho que ficara na bolsa da moça e que, por sorte, estava com pilhas novas. Por ele sabiam que as buscas continuavam e que as autoridades ainda tinham esperanças de localizar sobreviventes, especialmente agora que acabara de chegar um helicóptero moderníssimo, cedido pela FAB, e que dispunha de sofisticado equipamento para operações de busca e salvamento. Aquela notícia fora reconfortante. Passariam uma noite mais tranqüila e logo que o sol raiasse continuariam sua busca por uma clareira de onde pudessem fazer sinais para o helicóptero. Lembrando-se de seus tempos de escoteiro, Maurício procurara um riacho e vinha seguindo o seu curso. Essa era a forma segura de não andar em círculos e de acabar encontrando alguma das muitas povoações ribeirinhas que ele sabia existirem naquela região. Caminhavam calados, para poupar energias, mas de repente a moça deu um grito.

         — Socorro, Maurício!

        Ela estava parada em frente a um esqueleto humano que até brilhava à luz da manhã. Maurício se aproximou cauteloso, abraçou a moça para que ela parasse de tremer e disse:

 — Não tenha medo, menina. Esse aí não pode fazer mal a ninguém.

        Eles estavam imaginando o que teria levado alguém a se embrenhar sozinho naquela mata quando a explicação surgiu na forma de uma bolsa de couro que estava junto ao que havia sido a cintura do aventureiro. A bolsa, de bom tamanho, estava cheia de esmeraldas. Maurício ficou calado imaginando quantos milhares (ou seriam milhões?) de dólares valeriam aquelas pedrinhas verdes depois de lapidadas.

         — Acorda, Maurício, larga essa porcaria aí e vamos embora...

          — Porcaria!?!? Isso são esmeraldas, menina! Eu não estava dormindo. Estava pensando em como é estranho o meu destino. Primeiro ele me arrasa, depois me salva e me faz conhecer você, a coisa mais doce que pode existir...

         — ... obrigada. Eu também já estou achando você uma doçura...

         — ...agora faz com que eu de repente fique rico...

         — ..eu, ou nós? Doçuras, doçuras, negócios à parte. Metade do tesouro é minha...

        Maurício não respondeu. Na verdade ficara um pouco decepcionado. Ele dissera "eu" mas era lógico que ela era parte de sua felicidade. A tristeza não durou nem meio minuto. Certamente ela também não falara por mal. Uma doçura como ela não poderia ser interesseira. Bastava olhar o seu sorriso...  Ele não queria porém que a mais leve sombra de dúvida toldasse o relacionamento deles.

         —  É, vamos embora. É melhor que as esmeraldas fiquem com você.

         —  Nada disso, é melhor ficarem mesmo com você. Prenda a bolsa na cintura, como o garimpeiro fez. Nem morrendo ele perdeu as pedras.

        Maurício respirou aliviado. O sentimento que se formara entre eles havia resistido à maior de todas as provas: o enriquecimento súbito. Seguiram abraçados o curso do riacho que vinha sendo o seu guia. Depois de algumas horas de caminhada começaram a ouvir, ao longe, um ruído surdo. Era como um rugido imenso que a princípio os assustou. Logo porém, tudo se esclareceu. Era o barulho de uma cachoeira que já deveria estar próxima. Realmente, poucos minutos depois eles verificaram que o riacho que vinham seguindo desaguava em um rio caudaloso, cujas águas se lançavam numa enorme depressão do terreno formando uma cachoeira de uns trinta metros de altura. Eles estavam no topo da cachoeira em um vastíssimo platô de pedra. Era tudo de uma beleza deslumbrante. Com a vantagem de que dali poderiam facilmente fazer sinais para o helicóptero e este poderia pousar com toda a segurança. Não precisariam nem ser guindados pelos soldados, como se costuma ver nos filmes documentários. Nada de ficarem pendurados, balançando na ponta daquela corda apavorante, que parece prestes a arrebentar. O resgate poderia ser com o máximo de segurança e o máximo de conforto, como convém às modelos famosas... Agora era só esperar. Maurício recolheu um monte de gravetos secos e fizeram a fogueira salvadora. A fumaça, abundantemente produzida por punhados de folhas verdes lançados ao fogo, subiu célere em busca do céu. Pena que fosse tão tarde. Essas buscas não podem ser feitas senão à luz do sol. Teriam de passar ainda uma noite ao relento, mas seria a última, com certeza. O pesadelo estava acabando. Quando escureceu de todo ligaram o radinho.

         — Aqui fala a Rádio Pororoca, a Voz da Amazônia. Registramos com enorme satisfação e muita honra a presença em nossos estúdios do capitão Medeiros que coordena os serviços de busca e salvamento dos possíveis sobreviventes do avião desaparecido no início da semana. Boa noite, capitão. O senhor ainda tem esperanças de sucesso na operação sob seu comando?

         — Certamente. Já localizamos uma clareira na mata, no topo de uma cachoeira, onde o helicóptero poderá pousar com toda segurança. Assim, além das buscas pelo ar, teremos uma equipe em terra vasculhando a área. Estou seguro de que amanhã mesmo teremos boas notícias. É bom lembrar que não houve explosão. Nesses casos a probabilidade de sobreviventes é muito grande pois a queda do aparelho é amortecida pela copa das árvores.

        Maurício e sua companheira se olharam sorrindo. Aquelas palavras soavam como música celestial em seus ouvidos. Eles eram um casal abençoado. Haviam sido feitos um para o outro. Sua união seria eterna.

         —  Desliga isso, Maurício, não precisamos ouvir mais nada.

         — Espera um pouco, vamos ver se o capitão diz ainda alguma coisa que possa nos interessar.

         —  Capitão, possivelmente os sobreviventes estarão nos ouvindo em algum rádio portátil. O senhor teria alguma palavra para eles?

         —  Não se desesperem. Nós estamos a caminho e vamos buscá-los. Mas nem mesmo se alguém se extraviar isso será motivo para desespero. Alguns quilômetros abaixo da cachoeira de que falei existe um povoado. Basta seguir o curso do rio e vocês chegarão lá. É uma caminhada muito penosa mas é também um caminho de salvação.

        Na manhã seguinte acordaram logo ao raiar do sol. A fogueira estava quase apagada e Maurício entrou na mata para apanhar mais gravetos secos. Havia andado um pouco quando tropeçou em um cipó e caiu numa fenda que havia no terreno. Era como um poço profundo, muito profundo. Ele estava bastante ferido mas não parecia haver fraturas. No chão do poço havia grossa camada de folhas secas que amorteceram a queda. O problema era não haver possibilidade de escalar aquelas paredes de pedra lisa, principalmente com os dois tornozelos luxados. As luxações estavam inchando e doíam terrivelmente. O único recurso era gritar por socorro. E assim fez Maurício o dia inteiro. Mas inutilmente. O ruído da cachoeira abafava os sons de sua garganta, que iam ficando cada vez mais fracos... Exausto, Maurício desmaiou. Quando recuperou os sentidos já era noite. Instintivamente, ligou o radinho, que havia ficado em seu bolso. O repórter estava entrevistando a modelo que havia sido resgatada naquele dia.

 — ...você disse que teve um companheiro durante toda essa aventura, mas ele não foi encontrado pela equipe de resgate. Você acha que ele morreu?

 —  Não, não creio. Deve estar vivo. Ele é muito vivo. Nós juramos amor eterno, mas eu não me chamo Esmeralda...

        O repórter não entendeu nada. Maurício entendeu tudo, mas não podia lutar contra o seu destino. Sentou-se no chão coberto de folhas, mais acabrunhado do que quando sentara na última poltrona do avião. Fechou os olhos e voltou a pensar no seu destino. "Teria sido muito melhor se eu tivesse sentado na primeira poltrona. A morte teria sido rápida e eu nem teria conhecido aquela doçura de mulher." O que mais lhe doía era ela ter ficado com a idéia de que ele a traíra. Lembrou-se de ter lido em algum lugar, ou visto em algum filme, a história do descrente que, em grande aflição, rezara: "Oh, meu Deus, eu não sei se você existe, mas lhe peço, de joelhos, que me salve." Maurício fez o mesmo, com toda devoção, tal era a ânsia que tinha em poder rever a sua amada. Nada, porém, aconteceu. Nos filmes tudo era fácil, mas a realidade era perversa. Vencido pelo cansaço e pelo desânimo, Maurício deitou-se para dormir o sono eterno. Mas acordou no dia seguinte, quando o sol a pino entrava pela abertura do buraco onde caíra. Levantou-se correndo, com a esperança de que tudo não tivesse passado de um pesadelo. A violenta dor nos tornozelos fez com que voltasse a deitar. Infelizmente não fora pesadelo. Era tudo real, inclusive a fome e principalmente a sede que estavam se tornando insuportáveis. Quis matar-se, mas logo viu que nem isso estava ao seu alcance, no fundo de um buraco de paredes lisas. Seu destino seria mesmo morrer à míngua, longe de tudo e de todos. Seu último pensamento foi: "Que crime terei cometido, para merecer um tal tormento?". Depois ficou apático, apenas olhando a nesga de claridade no alto das paredes. Estava assim havia horas, quando de repente viu que alguém caíra no buraco, exatamente como havia acontecido com ele. A única diferença foi que dessa vez uma cabeça apareceu lá no alto gritando:

         — "Güenta" aí, companheiro. Eu vou chamar os outros e logo, logo, te safamos.

         Os dois acidentados se olharam e era impossível dizer qual o mais espantado com a presença do outro. Maurício foi quem primeiro recuperou a fala e perguntou:

         — Quem é você?

         — Eu sou o Zé, da Vila Juciramã, rio abaixo. Vim com o meu grupo de devotos para um despacho na cachoeira, como fazemos de vez em quando. Agora, eu é que pergunto: quem é você e que diabos está fazendo sozinho no fundo deste buraco?

        Um ano mais tarde, Maurício exibia, orgulhoso, aos amigos a filhinha que acabara de nascer.

         — Que nome vocês escolheram?

         — Esmeralda...

Lycio de Faria
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