Solange acorda assustada e, na escuridão do quarto, tenta
achar o interruptor do abat-jour ao lado da cama. Pesadelos de novo? Entretanto
não se lembrava de nada. O caso é que agora ia ser difícil
pegar no sono outra vez. Melhor se levantar e preparar um chá. Sem
cafeína, que fique claro, dona Solange. Dona, que engraçado.
Um dia chegou ao Brasil e já no aeroporto foi um tal de dona e senhora
que ela estranhou. Caramba, será que envelheci tanto assim ou foram
os hábitos que mudaram por aqui? Pensou. Um saco aquela história
de ‘A senhora podia preencher aqui esse papel?’ ‘A senhora quer açúcar
ou adoçante?’ Às vezes se perguntava se era com ela mesma.
Preferia mil vezes o ‘você’ ou ‘tu’ ainda que com o verbo mal conjugado.
Quando deixou o seu país e a ditadura ainda era chamada de ‘menina’
apesar das responsabilidades, pensa enquanto estica os braços diante
de uma foto sua pregada na parede do pequeno apartamento no centro de Bruxelas.
Um amigo fotógrafo a surpreendera num momento de tranquilidade atrás
da cortina de fumaça. Nem gostava de pensar que um dia fora fumante
e, se não fosse pela suavidade que o fotógrafo conseguira
captar, teria escondido aquela foto dos olhares dos amigos. A foto era
tão boa em seu conjunto, inclusive a fumaça, que decidiu
deixá-la ali. Enfim, não se pode apagar o passado.
Percebeu com surpresa que quando a foto foi tirada ela estava usando uma
bata branca com bordados. A mesma bata branca com a qual ela chegara ali
naquele aeroporto sem saber em que parte do mundo se encontrava, custando
a acreditar quando lhe disseram que estava livre. Livre? Olhava para os
lados desconfiada pensando que aquilo podia ser mais uma das tantas que
os militares gostavam de aprontar. Mas não era, estava livre. Livre,
livre, livre. Agora era só aprender uma língua estrangeira,
aprender a suportar o frio, aprender a viver só, aprender a ser
outra.
Nunca tinha reparado nisso antes. A mesma bata. Mas não
era engraçado isso? Podia jurar que era essa bata que ela estava
usando no dia em que fora levada para o primeiro interrogatório.
Interrogatório! Pronuncia a palavra com um sorriso amargo. Até
ela já estava se traindo pois aquilo nunca tinha sido um interrogatório.
Do que o tempo não era capaz. Mas não podia ser a mesma bata
porque senão ela não estaria ali naquela foto que foi tirada
muito tempo depois, quando ela já estava na Bélgica. Estava
certamente confundindo os fatos que, confusos, deixam de ser fatos.
Precisava um dia botar as memórias no papel antes que seja tarde
demais, antes que a demência chegue mas, há quinze anos estava
a dizer isso a ela mesma, que precisava trabalhar a memória e registrar-
ou registar como quer o Saramago- o que vivera. Pouco importa o verbo,
ou melhor, o verbo importa muito contudo nada saía dessa cachola.
Sair saía mas nunca ia para o papel, só servia para impedir
o seu sono. Rabiscara alguns poemas, era verdade, e até publicara
um aqui outro ali, mas nada de fatos. Lá vem de novo esse sinal
cerebral insistindo com a palavra ‘fatos’. O que eram os fatos afinal?
O fato agora era aquela foto que mostrava a bata branca que não
deveria estar ali. O mais provável é que naquele dia estivesse
usando uma roupa da prisão. Ou roupa nenhuma.
Porque é que acordara assim no meio da noite? E tão terrível
a noite. Durante o dia dá-se um jeito mas à noite... A noite
todos os gatos são pardos, dizem. Na prisão os gatos eram
pardos durante o dia também, até porque, às vezes
nem sabia quando era noite e quando era dia. Merda, tinha que evitar esse
malabarismo mental, caso contrário não voltaria a dormir
e seria torturada pelas lembrancas por umas cinco horas ou mais. Que horas
seriam, afinal? Vamos tentar um chá de camomila. Chá de camomila
para um sono tranqüilo. Será que a camomila ajudava também
a botar ordem nas idéias? Outro método antigo era contar
carneirinhos mas nunca funcionara com ela. Desenvolvera uma tática
pessoal que consistia em tentar se lembrar das orações. ‘Ave
Maria, cheia de graca, o senhor é convosco...’ Enquanto tentava
achar a sequência o pensamento estava ocupado, nem sempre voltava
a dormir mas às vezes conseguia redirecionar o foco da memória.
Tentava imitar a paixão da avó quando rezava a Ave Maria.
Lembrava-se dela rezando o terço com as outras velhas. Que tédio
as noites de novena, uma ladainha interminável. E para que servira
todo aquele teatro? Quando precisou de deus, onde ele estava? Em
lugar nenhum, então chegou à mesma conclusão que muitos
dos companheiros, ele só podia não existir. Não existia
e vamos à luta. Cada dia uma batalha, uma batalha solitária
e anônima. Não haverá heróis e muito menos heroínas.
Que destino levara aquela bata branca? Se pergunta olhando de novo para
a foto. Deve ter ficado perdida no caminho. Num dos caminhos. Talvez a
tenha deixado na casa da mãe e ela a tenha usado para limpar o fogão.
As vezes ela cortava as roupas velhas e as transformava em pano de limpar
poeira, de limpar o chão, o fogão. Enfim, não tinha
importância, fazia tanto tempo. A mãe não podia imaginar
quanta história aquele trapo carregava. Aliás a mãe
não sabia da missa um terço. Até hoje achava que Solange
era uma criadora de casos, que as amizades a tinham corrompido e levado
ao desastre. Quando algum companheiro ousava vir à sua casa era
obrigado a ouvir o sermão da mãe e quando ele se ia ela,
Solange, tinha que ouvir críticas ao seu modo de vestir, de falar,
de andar. A velha era fogo mas Solange não tentava argumentar ou
explicar. Era como se vivessem em dois planetas diferentes. Abre a gaveta
e procura uma foto. Lá está ela com o seu ar severo, parece
a Bernarda Alba. Ai mamacita, se você soubesse...se soubesse teria
me amarrado à cama, à mesa, trancado o quarto e engolido
a chave. Mas ‘não se pode encontrar a paz evitando a vida’, não
é mesmo? Mamãe eu estou tão cansada, estou tão
cansada que estou aqui conversando com a sua foto. Eu estou tão
cansada e o meu chá de camomila não fez efeito. Nem vou dizer
que vou me resignar e esperar o dia raiar porque aqui não haverá
muitos raios, ele vai chegar discretamente. Os ruídos dos carros
e das portas é que vão me dizer que o dia chegou. Claro,
tenho também um relógio e agora ele está mostrando
quatro horas e trinta e seis minutos.
Solange toma mais uma chícara de chá, senta-se à
mesa, pega um bloco de papel, uma caneta e se põe a escrever. Escreve
incansavelmente entre xícaras de chá e lágrimas. Primeira
carta destinada à mãe, que ela não se preocupe, ela
está muito bem e que ela tente compreender que, embora já
possa legalmente voltar para o Brasil, emocionalmente ainda não
pode. Ela, a mãe, era testemunha de que ela, Solange, tentara mas
aquele país já não era mais o seu ou ela já
não era mais ela. Alguma coisa tinha acontecido, muitas coisas tinham
acontecido...Por acaso eu deixei aí uma bata branca muito velha?
Mas não se preocupe, ela está realmente muito velha e fora
de moda, eu só queria saber. Abraço a todos com muito carinho
e peça que me enviem notícias. Telefonarei logo que puder.
Quando termina de escrever a última carta ela pega os envelopes,
escreve os endereços, dobra as folhas, coloca cada carta no respectivo
envelope, prega os selos e ouve o primeiro motor passar na rua. Veste uma
calça jeans por cima do pijama, coloca duas meias, pega o seu pesado
casaco e vai até a caixa do correio onde deposita as cartas. A neve
caía e ela tinha esquecido as luvas e o gorro. Corre até
a padaria: ‘Bonjour Monsieur, une baguette s’il vous plaît!’
Leila Silva
2003 Atlanta – Georgia USA