Pela primeira vez consigo subir todos os degraus do meu pensamento e chegar lá em cima no velho sótão e enxergar a tal menina que sobrevive escondida por lá.
Ao me ver ela corre, se assusta e se esconde atrás de uma figura enorme, é um homem muito feio, suas feições lembram os filmes de horror, parece mesmo o próprio demônio, talvez aquele que viva dentro da gente.
Eu me agacho e estendo solidária minha mão, ela me olha com desconfiança por detrás da figura demoníaca. Aos poucos ela vai se mostrando, apesar da enorme mão peluda e com unhas compridas tentar segurá-la. É uma criança bonita, têm traços leves, olhos amendoados, cabelo no ombro e franja, cortado como uma indiazinha, ela tem traços indígenas herdados de sua avó paterna.
Uma menina com um rosto sofrido, não sorri, tem uma bochecha avermelhada pela timidez, mas não se esconde mais. Um corpo raquítico em contraste ao rosto sadio.
Ela veste um vestido de paninho barato comprado pelo pai, é um tecido de fundo branco com florzinhas coloridas, modelo retinho com uma prega no centro, como sua mãe sempre fez.
Aos poucos e timidamente ela se aproxima, seu rosto é sério e desconfiado, sinto outra presença ao meu lado e ela instantaneamente se vira, seus olhos brilham, assim como seu rosto. Viro-me para olhar também e vejo uma figura linda, uma mulher de cabelos longos, veste um vestido largo e solto que flutua junto como ela, toda branca, como seus olhos, todo branco, uma aura iluminada a sua volta, como um anjo.
Instintivamente a menina estende-lhe a mão e toca em suas vestes,
transpassa aquele circulo brilhante que a envolve.
Pergunto a menina:
— Vocês se conhecem?
Ela me diz:
— Sim, há muito tempo. Eu retruco:
— Então porque estava do outro lado ?
— Porque preciso, não posso ficar de um lado só.
Chamo a menina com as mãos e ela deixa brotar em seu rosto um sorriso, seus olhos agora brilham e vem correndo em minha direção.Abraço-a fraternalmente, aliso seus cabelos e dou um beijo em seu rosto. Seguro ao lado de seus braços e pergunto:
— De que você precisa? Como posso ajudá-la?
Ela me responde com uma pontinha de tristeza no olhar:
— Preciso, disto, exatamente o que esta fazendo agora, me dê um pouco de carinho de vez quando, não se esqueça de me visitar, não deixe que eu desapareça.
— Diz-me o que tenho feito de errado? Ensine-me então o caminho, minha menina?
Ela deixa uma lágrima rolar e diz com a voz embargada de emoção:
— Apenas me deixe existir de vez em quando, não deixe que sua vida seja tão séria e tão adulta assim, apenas me permita tomar seu lugar e resolver coisas que te parecem tão complicadas às vezes. A vida não pode ser tão adulta assim, viva mais e deixe as pessoas que estão ao seu redor viver também, você se lembra como eu gostava de dançar? cantar? pular? brincar? eu sempre fui sorridente, brincalhona,extrovertida, olhe o que você fez comigo.
Eu então a olho e revejo toda a minha vida e penso como ela está certa, como tenho sido tão séria, como não tenho me permitido mais sonhar, viver, tentar, errar!
— Neste momento volto meu olhar e vejo apenas meu quarto, vejo quanta bagunça, computador, impressora, perfumes, cremes, livros, sapatos, roupas, remédios.
Na parede nem um quadro pra alegrar, na janela apenas uma renda pra esconder um pouco, na sacada do quarto uma planta que resiste, sobrevive, mas se estica crescendo em direção ao muro, passa por ele e segue crescendo, talvez em busca de liberdade, uma cadeira que poderia ser usada para descanso e sombra nos dias quentes, mas está lá sem uso.
Resolvo mudar tudo, retiro computador, excesso de coisas que nunca uso, coloco um quadro enorme de uma floresta, pinto a parede de uma cor mais clara, tiro a planta e faço uma poda, replanto, ela parece que ganhou nova vida, trago-a para dentro, coloco um chafariz pequeno que faz um barulho de água constantemente, penduro na varanda um mensageiro dos ventos de bambu, que reproduz quando venta o barulho de cachoeira.
Olhando agora parece uma nova casa, me sinto ótima neste meu cantinho. Ligo o som e canto, danço e dou muitas risadas, quando olho no espelho vejo então a menina sorrindo e ela pisca para mim.
Vera Vilela