Tô
puta da vida!
Quanto tempo perdido, tanto choro, tanta dor... quantas vezes odiei aquele
crápula e desejei finalmente ser famosa, mesmo saindo na primeira
página de um jornaleco qualquer, escondendo a cara dos fotógrafo
sob o título: “mulher traída mata amante”?
Quantas vezes neguei, sublimei, fiz pose de mulher resolvida, emancipada,
independente?
Depois de tudo eu ainda dou de cara com isso? Ninguém merece!
Atravessei a rua engasgada. Parecia um avestruz que engoliu uma bola de
futebol. Não olhei se o sinal estava fechado e depois da freada
ainda gritei na cara — mas na cara mesmo do imbecil que quase me atropelou:
CRETINO! Nem com uma melancia na cabeça ou se fosse o obelisco de
Ipanema, o incompetente do taxista conseguiria me atropelar. E ainda por
cima me arrebenta a tira da sandália. Droga! Ninguém merece!
Pensava mesmo em jogar tudo para o alto, que se danem todos! Que se fodam
de verde e amarelo! Vou para casa tomar formicida.
Formicida? Coisa de pobre... chumbinho, veneno de rato... nada disso. Tem
que ser uma coisa com mais élan. Com um certo charme de heroína
neoclássica. Se bem que estou mais para tragédia grega. Me
mato e deixo o miserável cheio de culpa.
Há! Doce vingança...
Não é possível! Depois de todos esses anos o idiota
do analista não conseguiu me curar? O sacripanta ficava lá,
paradão, fazendo “hum...hum”, enquanto eu, deitada em decúbito
dorsal, revirava minha vida de trás para adiante, colocando as veias,
carnes, e gorduras (droga, ainda por cima gorda!) para fora, jogando
a culpa toda em cima daquele bundão e o outro lá me olhando
mudo. Devia gozar, o sacana, com as minhas lamúrias. O tal do Freud
pendurado na parede com aquele jeito... sei não... aquele charuto
suspeito. Para quê? Para nada? PARA NADA!
Resolvo a questão rapidinho cortando os pulsos! Isso! Não
deixa de ser uma decisão romântica: escreverei uma carta de
despedida com o sangue dos inúmeros cios que eu, cadela, derramei
por você. O sangue ficará manchado com as lágrimas
que ainda choraria, seu hipócrita, mas que hoje, HOJE, finalmente,
cesso. Zefini! Nunca mais!
Anexarei à carta, uma poesia daquelas sem graça, da pior
qualidade, falando de amor, paixão, qualquer “ão” desses
que rima com coração, meu tesão, gostosão....
Enviarei também aquele lençol manchado com teu suor, com
teu cheiro, sua cor, (ai!). Embrulharei tudo em papel de Sonho de Valsa
e golpe de misericórdia: juntarei aquele bilhetinho que você
escreveu no guardanapo amassado, ao lado da minha boca no 54 “Love Femme”,
ainda borrada com os pingos da cerveja que naquela época era redonda.
Lembra daquele bilhete, seu babaca? Naquele dia depois do bar, entre juras,
beijos e suspiros — lembra? — você escreveu: “Te amo, meu xuxuzinho...
(assim com X, seu analfabeto)... seu, para sempre. Odilon”. Há!
Sei! “Sempre” você escreveu ali. “SEMPRE”! Mentiroso duma figa!
Depois de tudo providenciado e nos conformes, mandarei para o seu endereço.
Darei um jeito para que ela — ELA — abra a caixa de correspondência.
E me deliciarei com o ar de vitória estampado naquele rosto de lambisgóia.
Mas as marcas no lençol, ah... essas ela jamais maculará.
Essas marcas são nossas e estão misturadas com os sinais
do gozo, do céu sempre revivido cada vez que nos tocávamos,
da pele onde te arranhei com garras de gata vadia. Essas marcas ela nunca
tomará posse! Ouviu bem? Nunca! Never! Nunquinha!
Aqui, ó!
Depois tomarei um banho demorado, acenderei velas aromáticas, beberei
um licor de jenipapo. Borrifarei perfume no cangote (aquele que você
gosta e que cheira igual ao L’air du Temps). Passarei hidratante no meu
corpo nu que você dizia que era lindo, gostoso, macio, canalha e
te mandarei um e-mail: “FUI!”.
Está tudo resolvido. Me mato numa poça de sangue que
nem naqueles filmes de holiúdi.
Espero a noite descer calmamente enquanto escuto os sons da Nossa Senhora
de Copacabana — buzinas aqui, uma freada acolá, um xingamentozinho,
um “pega ladrão!” lá longe... espalho propositadamente copos
e garrafas de uísque pela sala onde estrategicamente jogadas em
alguns móveis, estão algumas peças de lingerie. Ponho
um disco qualquer na vitrola e finjo que é um bolero dos anos 50.
No vizinho, a televisão muito alta toca a música do Jornal
Nacional. Fungando, suspiro profundamente, morrendo de pena de mim e espreito
com rabo de olho o peito desnudo do Mel Gibson que, paradão lá
no poster, me dá uma piscadela. Ah, Mel... se eu não fosse
me matar...
Verifico com uma ponta de saudade, minha estante repleta de livros de auto-ajuda,
calculando assim por alto, quanto gastei todos esses anos na tentativa
de ser feliz e bem sucedida. E para quê? Fui feliz? Consegui ser
um sucesso? Para que tudo isso?
Para descobrir que você ainda é o homem da minha vida. Que
você me tem na palma da mão. Tem meu corpo, minha mente, vísceras,
sexo. É dono até das minhas aftas.
Como posso me perdoar? Não depois de tudo o que você fez.
Ah, não! Todas as promessas rompidas, os sonhos desenganados, a
cama desfeita, a comida azeda e esquecida na mesa do jantar. Como posso
me perdoar por ainda amar e desejar você? Por sonhar com seu cheiro?
Como? Responda: COMO?
Fumo o último cigarro, enxugo a derradeira lágrima espremendo
com força para borrar o rímel, jogando a mecha oxigenada
em cima do olho para dar um certo ar de mistério. Me aproximo da
porta do banheiro, único cômodo iluminado, como se fosse um
palco. Olho demoradamente para o apartamento apertado demais para tanta
coisa e imagino a cena: eu, nua, pálida na banheira cheia de sangue.
Um braço cai displicentemente para fora. O disco de vinil rodando
e rodando sem som na vitrola.
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PUTA
QUE PARIU!! DROGA!!
Eu sabia que alguma coisa estava errada! Algo não fazia sentido.
Minha super produção, estragada. Meu holiúdi, arruinado.
Meu último ato, aquele em que eu sairia da vida para entrar na primeira
página de um folhetim barato, sumariamente arrasado: EU NÃO
TENHO BANHEIRA! PORRA!!
Quase desfaleço de decepção. Por segundos não
sei o que fazer ou dizer para mim mesma. Para mim, que nunca soube me escutar.
Também, essas merdas desses apartamentos parecem uma caixa de fósforos.
O que faço, Meu Deus? Imagino a cena: o sangue espalhado pelos azulejos
verdes, a proprietária reclamando na próxima reunião
de condomínio. E eu nem tenho faxineira. Lembro do formicida. Não....
formicida nunca! Penso rapidamente em uma outra solução:
coloco a cabeça no forno e ligo o gás. Perfeito. Mas tem
um porém: depois de morta, dizem que a gente fica HORROROSA. Inchada
e vermelha como um pimentão. E quero ficar branca e lânguida.
Linda e loura como uma estrela de cinema.
Tomo a decisão mais difícil da minha vida: OK! É seu
o meu peito dilacerado, a minha vida rota e desgraçada é
sua. EU ME RENDO! Amo você e pronto!
E tenho dito!
Abro um pacote de cream cracker e vou assistir a novela das 8.
Daisy Melo