O sonho da Matriarca

A casa está vazia, a poeira encobre o que restou dos móveis, o ar abafado está impregnado nas paredes, no espaço cada vez mais vazio da morada da matriarca. Fora dali, a rua normalmente escura e abandonada vive um ar de festa, as fogueiras de São João iluminam as almas, tecem um tom leve mas sincero de alegria no rosto pardo dos moradores da vizinhança, algumas poucas crianças correm e brincam, reproduzindo as comemorações juninas cada vez mais distantes.
O tempo não passa no interior da morada da matriarca, está lá, suspenso, perdido, a cronologia que rege a sua vida corre em uma freqüência diferente, mais lenta, quase estática. Ao passo que o tempo permanece descompassado, a poeira se acumula e encobre os quartos, salas, o velho pingüim em cima da geladeira que funciona sofrivelmente, espalhando-se por copos e taças de decoração, passando pela vitrola antiga que só comporta, além de pó, a mudez da solidão perpétua e presente.
O único som que faz companhia ao sono da matriarca é o de um fogo ou outro perdido no fim de festa de São João... a matriarca cochila diante da televisão, em seus olhos cansados surgem as formas e cores de uma fogueira que arde dentro dela, fogos explodem, trazendo-lhe lembranças e impressões vivas, atuais, ao seu redor ergue-se um cenário que ela não esqueceu... Seus olhos estão fitos na chama latejante da fogueirinha de São João, em seu rosto há cansaço, mas os traços não são tristes, sua carnição é branca, de uma constituição rija, em seu olhar há um mistério mouro, um mistério circunscrito em feições expressivas e um tanto rudes. Naquele dia ela havia tido muito trabalho, não que fosse raridade a labuta em sua vida, mas naquele dia em especial sentira abater-se sobre o próprio corpo, a própria carne o cansaço de tanto trabalho... o cansaço misturava-se à sensação inafastável de solidão, embora estivesse cercada por cinco filhos que o marido falecido lhe deixara. O calor que emanava das chamas penetrava a pele leitosa e despertava a mulher esquecida de si, "a Festa" a faz pensar que não há muito fôra em um dia como aquele que ela descobriu um calor também a subir-lhe pelo corpo, quando parou diante daquele moço de olhar vivo, envolvente e simpático... sentiu-se desnuda diante daquele olhar masculino, que nunca vira igual.

— Cumpadre Chico Caldas, até que enfim resolveu vir prosear um tiquinho com os amigos, abandonando os ares do interior do Maranhão. Espero sua visita à minha casa, eu e Fátima fazemos gosto em recebê-lo, saber de suas andanças e o que conta das novidades de Milagres.
— Cumpadi sabe que não faltarei ao convite, que temos além de prosa pra por em dia, negócios também... soube que o cumpadi anda fazendo viagens pro interior do Piauí.
— É, mas apareça pra bebermos um suco de bacuri, essa moça bonita que o amigo traz não é a sua irmã, é?!
— É... Júlia cresceu e com a morte de pai, achei de mais proveito ela vir pro litoral, América já mora aqui... essa é trabalhadeira, vai se acostumar com os novos ares. (a moça não olha diretamente no olho do estranho, nele há algo que a incomoda, mas ela busca fugir daquela presença... sem contudo deixar que qualquer dos dois perceba)

Parece que foi há tempos... as vozes e diálogos se recompõem em sua memória, até o ar úmido da chuva que caíra permanece na moldura de suas lembranças... foi diante de uma fogueira que ele surgiu vestido de branco usando um chapéu coco, com um sorriso inesquecível, que sintetizava alegria, altivez e uma atração que revirou sua alma. Recorda como seu coração pulava incontrolável e ardente, como se o ar festivo adentrasse por todos os poros e contagiasse a sua alma que explodia como fogos de São João. Não se recorda mais como, mas vem à sua mente o beijo roubado, o perfume indescritível que seu nariz tragou em doses profundas, que a levaram a um estado de total esquecimento do mundo, um mundo que sempre lhe fôra duro, senão cruel.
À proporção que a fogueira arde, e seu olhar perdido a faz lembrar que está agora só e com cinco filhos pra criar, sente a beleza da noite em que se entregou ao seu amor embotada pela nuvem da sobrecarga de responsabilidade que a vasa por todos os lados. O corpo nu e liberto sobre a cama que recebia as carícias do amante e depois companheiro, contrastam com o abandono de carícias e desvelo que os novos tempos impuseram... aquelas lembranças em um determinado momento chegaram a lhe causar raiva, talvez por sentir um tom de covardia na morte do seu amor, ao abandoná-la, só e pobre. A morte do seu amor não fora a simples separação, fôra também a resposta por todos os sacrifícios que fizera... o irmão Chico a tinha como morta. Só a irmã lhe estendeu a mão, um braço que nunca recusou apoio.
Aqueles segundos cortaram anos de sua vida, sentiu-se devolvida ao dessabor da realidade... vira o rosto e encontra a filha a chamá-la, diz em um tom mecânico que está indo pra casa de América, algo que fazia com rara freqüência, pois quase nunca saia de casa... onde vivia silenciosamente sua rotina de trabalho interminável.

A matriarca desperta e caminha para o seu quarto no fundo do corredor, e em cada passo trépido, é como se confundisse as lembranças do passado com as atuais, os filhos já não estão com ela, a casa não é mais a mesma, a cidade já mudara de há muito... diante da imagem do falecido,  dentro de uma moldura desgastada pelo tempo, mas conservada em tom lustroso, ela rumina palavras indiscerníveis, como que conversa com seu olhar, que ali emoldurado já não tem mais viço, brilho... em um misto de reza, as velas ao redor acesas, a noite escura a invadir a casa abandonada, ela trava um monólogo que ainda alimenta a sua alma, no corredor, na sala contígua e na cozinha, além da escuridão, só os ratos fazem companhia ao sonho da matriarca.

Rodrigo Caldas

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