Apanhou a lanterna e desceu.
O mar parecia mais violento hoje do que habitualmente, gotas salpicavam
a capa encerada.
Olhou para o horizonte escuro. Nenhuma estrela.
Abaixo dele, a espuma fazia desenhos nas rochas. Caminhou com cuidado,
por entre as pedras cobertas de limo. Não podia escorregar. Não
agora, não esta noite.
De dentro do farol a música insistia: “paréeeeeece que alguéeeem
que cheio de mágoa...deixasse quem há de... dizer a saudade...
no meio das águas.. rolando também...” Música do interior.
Antiga. Como ele. Será que viriam? Os outros.
Consultou outra vez o horizonte escuro.
O brilho do farol varria a água fazendo cintilar as ondas.
Nenhum barco se aproximava.
Esperou alguns minutos, ouvindo as batidas do seu coração.
A música cessara. Agora, apenas o vento, aquele vento companheiro,
continuava cantando.
Consultou outra vez o horizonte e o céu. Algumas estrelas começavam
a aparecer entre a névoa. Mas não havia nenhum barco.
Ninguém.
A luz giratória percorria o mar de forma sistemática, sem
nunca se enganar.
Como ele, que sempre soubera o momento e a palavra. Soubera também
sair de cena e calar.
Agora ansiava pela presença deles, como antes os odiara.
Voltou para dentro da segurança do farol. O que antes parecia predestinação,
hoje era apenas tédio, solidão.
Viria a Mulher? Abriu a porta enferrujada e jogou a capa molhada num canto
do saguão. A mesa estava posta para seis pessoas.
A luz tornava acolhedora a cena e os esperados pareciam se materializar
ali, onde seu coração tentava se encontrar.
Ela fora tão importante um dia. Como seu corpo abrira crateras no
coração! Como tê-la entre os braços parecera
final, definitivo. Uma verdade amorosa que se consumia em si mesma e não
precisava de outras. Depois se transformara na bobagem amarga, na mentira
fútil do cotidiano. Onde estava aquela que o seu corpo conhecia?
Esperava. Talvez viesse, quem sabe?
Os dois filhos. Tão importantes para ele. Tão poderoso para
eles.
Pequenos pedaços do amor, olhos de sua carne, vento de seu momento.
Sem eles pensava morrer, sem eles não haveria vida, nem após
a morte, nem após a dor. Eles também se transformaram, na
ardida traição da maturidade. As vozes frias e medidas. O
embaraço escondido, para fingir uma afeição já
finda. Quem era aquele velho tedioso, que substituíra o pai ausente?
Em que momento se partira o laço da afeição? A vida
nos levava por caminhos longos, tão longos que perdemos neles a
referência antiga. Viriam os dois? Esperava.
A irmã, O irmão... longe no tempo as brincadeiras infantis,
as brigas, os ciúmes. A cabeleira longa penteada com capricho, puxar
os cabelos, esconder bonecas, depois beijar os dedos e pedir perdão.
“Perdão, minha irmã, perdão meu irmão.” Foram
tão longe na saudade. Depois dos pais, veio o aluvião. Já
nem conhecia mais suas vozes da velhice, nem entendia seus corpos de hoje.
O irmão, A irmã. Os conhecera um dia? Virão,
talvez.
Só podia esperar. Era seu verbo no momento.
Arrumou a toalha, ajeitou os pratos, alinhando os talheres com cuidado.
A luz se refletia no cristal dos copos lançando fagulhas coloridas
na parede.
Olhou pela janela, protegendo a vista da claridade para poder enxergar
na escuridão lá fora.
Apenas o mar, selvagem, violento e o vento que cantava.
Daqueles que esperava, nada.
A luz vasculhava a água, inexorável, trazendo a certeza da
não vinda.
Da solidão, que escolhera liberdade e se tornara guarda, sua espada.
Hoje era mais prisioneiro que o farol. E a luz que refletia, sempre a mesma,
jamais se tornaria algo mais do que o instante.
Apanhou a lanterna e saiu, decidido.
Sabia o que fazer. Com uma certeza que nenhuma lembrança poderia
apagar.
Maria Helena Bandeira