Primeiro foi uma japonesinha doce, quieta, frágil. ‘Entre Chihiro,
vem chihirozinha, welcome to my little room, não se assuste com
a bagunça, feche os seus olhinhos e pronto.’ Mostra-lhe uma cadeira:
‘sit down.’ Pega o violão e ensaia uns acordes. ‘Escute, bosta nova...yes,
bos-sa-no-va, do you know?’ Puts, até os japoneses conhecem? Deixa
o violão num canto e se aproxima de Chihiro, toca-lhe suavemente
os dedos finos. Chihiro e os seus dentinhos tortos. Tudo era inho em Chihiro.
Deveria ter dado uma disfarçada no quarto, que bordel. Sempre ouvira
dizer que os japoneses apreciam um lugar limpo. ‘Não fuja. Chihirozinha.’
Chihiro não foge e entra com ele debaixo das cobertas sujas. ‘Hum,
Chihiiiiiiro.’ Jorge adormece por uns minutos e quando acorda cadê
Chihiro? ‘Que é isso, Chihiro? O que é que você está
fazendo aí pelada atrás do armário?’ Atrás
do armário, pelada Chihiro chora. ‘Mas o que foi que eu fiz, meu
deus, meu buda?’ Nunca fôra amada daquele modo, explica a delicada
Chihiro no seu inglês soluçante, e no dia seguinte volta para
o Japão. Sayonara!
Antes da Japonesa foi uma francesa que não tinha de jeito nenhum
a doçura da nipónica. Servira sim, para meter a mão
no seu bolso. A desgraçada disse que se casaria com ele em troca
de uma viagem ao Brasil. Não, não, não estava fervendo
de amor pela francesa, ele queria um green card ou blue card ou yellow
card, a porra que fosse, queria um papel e metera na cabeca que tinha que
fazer isso através dum casamento. Vaca francesa! O que custava ir
com ele à Maison Communale e dizer ‘oui’? Nada, não custava
nada. Disse que não gostava de homem, não tinha paciência,
entretanto tinha se divertido com ele, ah! Tinha. E daí que não
gostasse de homem? Podia continuar gostando do que quisesse, isso não
alterava nada nos papéis. Merde alors! Enfim, ao invés de
um doce oui conseguira a porta na cara acompanhada de um sonoro Au revoir!
Por último essa australiana risonha e safada. Meu deus ela nunca
se cansa. Lambuzara o seu corpo renascentista de chocolate, lambera tudo
arriscando problemas intestinais, passaram três dias e três
noites sem sair do albergue. Ele só saia do quarto para cumprir
algumas poucas horas de trabalho e era ali mesmo que trabalhava. Quando
despontava no corredor, com as olheiras aparentes, os outros brasileiros
vinham molestá-lo. ‘Afinal deu o ar da graça’. ‘Essa australiana
vai acabar com você, meu rapaz.’ ‘Tome um chazinho de gengibre que
ajuda a recobrar os ânimos.’ Ele nem respondia, mal terminava de
limpar as mesas, botar as bandejas no lugar, lavar os pratos e já
corria para o quarto. Um dia ele volta para a alcova e a vê de malas
prontas. ‘Que é isso, darling?’ Pergunta ele. ‘Bye bye!’ Responde
ela. Sobram-lhe as chacotas, algumas barras de chocolate e um vocabulário
nada prático de inglês. Merda! Já estava se vendo na
Austrália, abriria um pequeno restaurante em Sidney (ela era mesmo
de Sidney?), um bar, uma loja, qualquer coisa. Agora estava de novo ali
na estaca zero.
Luciano não podia vê-lo que já olhava para os outros
malicioso e cúmplice e começavam a rir. Está rindo
de quê, Luciano? Porque eu levei mais um pé na bunda? Idiota,
pensa que trabalha na recepção do Four Seasons? Ou é
a camisa nova e passadinha que te deixa tão contente? Eu sei que
custou caro essa sua camisa, sei que lhe custou caro sair daquela favela
de São Paulo e encontrar esse posto. O caminho foi árduo
e pedregoso, como diria o poeta – que poeta? Eu, é, às vezes
sou poeta - e árduo e pedregoso ainda é porque é preciso
prosseguir agora que você tomou gosto pelas roupas caras, os perfumes...
Vai Luciano, vou fingir que não percebo o seu sarcasmo pois sei
que você é um pobre coitado como eu, se não pior e
sei que você assinou um pacto com o diabo para deixar a sua vida
para trás. ‘Como vai, Luciano? Este fim de semana você vai
para Colônia? Bom fim de semana, lembranças ao seu velho.’
Não, não ia dizer isso, ia deixá-lo com o nariz empinado,
um dia ia acabar arrebentando a cara num poste. Termina de limpar uma mesa
e sacode as migalhas de pão na roupa do Luciano que vinha passando.
‘Oh, Luciano, eu não te vi, ainda agora você estava ali na
recepção.’ ‘Você é mesmo um desastrado.’ Reclama
Luciano sacudindo a roupa. Desastrado isso devia ser mesmo pois vinha ouvindo
essa palavra desde pequeno. A primeira trapalhada de que se lembrava bem
acontecera lá pelos cinco anos, quando um dia o pai pegou-o pela
mão, levou-o ao parque e lá deixou que ele se divertisse
à vontade nos brinquedos enquanto ele mesmo se divertia nos braços
de uma mulher que não era sua mãe. A trapalhada que cometera
fora dizer à mãe ao chegar em casa – até hoje não
sabe porque cargas d’água - que o pai estava com uma mulher. Por
falar demais levou uma sova feia do pai. Pois é, assim é
a vida. Dizem que é dos espertos a vida mas... ‘Jorge, você
já acabou de arrumar as mesas?’ Saco, todos resolveram pegar no
seu pé. Um dia eram amigos, no outro já não eram mais.
‘Já está quase pronto.’ Responde.
Depois, pensava, ia comprar um cartão para chamar a mãe.
Tinha lhe falado sobre a australiana, disse que era ‘coisa séria’
e a mãe ficara tão contente. Acreditava que uma companheira
poderia colocá-lo ‘na linha’, a pobre senhora. ‘Que linha, mamãe,
que linha?’ Bem que ele queria ‘entrar na linha’ mas não sabia como.
A cada vez que vislumbrava um traçado mais ou menos certo, punha
tudo a perder. Coitada da mãe, nunca tivera uma vida fácil
e agora que já estava velhinha tinha que se preocupar com esse filho
errante. Errante, que palavra engraçada, pensou por um momento.
Parecia se aplicar muito bem a ele, não somente porque vivia aí
pelo mundo mas também porque cometia um erro atrás do outro.
Mas nesse caso, nao era errante, seria ‘errador’? Não, nunca ouvira
isso na vida. Erradio talvez? Em todo o caso, pelo menos a mãe tivera
chance com os outros, um era professor na universidade e o outro músico
e pesquisador respeitado. Jorge também se considerava músico
com a diferença de que não era respeitado. De vez em quando
tocava ‘garota de Ipanema’ no metrô. Nem gostava muito de Bossa Nova
mas que se há de fazer era o que as pessoas reconheciam mais rapidamente
aumentando assim as chances de tocar-lhes os corações e os
porta-moedas. Tlim...tlim tlim… era doce o tilintar dos francos. Mas não
gostava de tocar só, ficava embaraçado e Fábio, que
normalmente o acompanhava, tinha decidido mudar de ramo. Precisava arrumar
outro parceiro.
Jorge vai até a cozinha, coloca os pratos e bandejas no lugar,
prepara um chá, senta-se numa cadeira no pátio e observa
os hóspedes, quase todos jovens falando em diferentes línguas.
‘Isso parece uma torre de Babel.’ Pensa. O seu olhar encontra o de uma
garota branquinha, de cabelos compridos, amarrados num rabo de cavalo.
Ela sorri e ele vai até ela ‘Bonsoir! Hein, no French? English?
My name is Jorge, yes Jorge, I’m Brazilian and you? Hein, Russia? Ohhh
Moscou?.’ Svetlana é uma estudante de música e está
viajando com um grupo de amigos. Já visitaram a França, a
Alemanha, a Espanha, a Holanda...sempre tocando aqui e ali para pagar as
despesas. Colocam uma plaquinha ‘Estudantes de música da Escola
tal de Moscou’. Têm tido sorte, muita gente pára pra ouvir
e são generosos.
‘I am a musician too, yeeesss.You want see my unstrument? I mean, my
guitar. Do you know Bosta Nova? Bos-sa-no-va. Noooooooooo?’ Mas esses russos
hein?
Leila Silva