Para além da fronteira

            — Ih, agora passou alguém vestido de Carmem Miranda! Que coisa, nem é carnaval, surpreende-se a mulher.
Uma moça puxa um garotinho de 3 anos mais ou menos, que chorando dentro da camisa do Flamengo, recusa-se a ir. Sumiram. Ela ainda estica o pescoço tentando ver o que vai acontecer, mas essa é a sua rotina — sem finais. Ela os inventa: “está indo ao médico, coitadinho”.
            Seu cotidiano aparece fragmentado e corrido no limite da sua janela. Ele vai e vem no vão entre o prédio imponente de mármore e janelas envidraçadas e o mirrado demais para tanto varal, onde se dependuram roupas coloridas que bailam ao vento morno.
            O mar surge no meio dos prédios pintado de verde escuro. A brisa enruga de um jeito brando sua superfície, pincelando filamentos brilhantes que dançam na água.
            A mulher suspira quando o casal de namorados desaparece por detrás do edifício cinza. Olha distraída a televisão ligada e sem som:
            — Diabo de moleque. Está atrasado! Meio-dia e meia. Já começou o jornal da tarde.
            Ajeita o bibelô na mesinha de centro, um cupido barrigudo que aponta a seta para a lâmpada do teto; e passa o dedo diligente pelo console, verificando o pó acumulado. Sem pó, confere satisfeita. Não se olha no espelho de moldura dourada.
            Na  cadeira de balanço reclama com João Sebastião, que recostado na almofada de veludo verde bordada com miçangas, escuta sonolento:
            — Agora ele deu para isso! Todo dia atrasado!
            Finge prestar atenção no locutor mudo. Também, para quê? Não confia mesmo nas notícias. Tudo balela! Tudo mentira! Propaganda enganosa, matéria paga. Você não acha, João? O que vale é a preferência do patrocinador. Pois bem. Não ia se deixar enganar. Confirmaria todas as noticias tintim por tintim quando o rapaz chegasse com o almoço.
            A moça gordinha passa correndo no seu collant verde alface, balançando ritmada seu excesso de gordura. João Sebastião olha para mulher já prevendo o diálogo.
            — Todo dia isso! Depois vem com a desculpa: “muitas quentinhas para entregar, Dona Madalena. Estamos cheios de pedidos. Blá,blá,blá”, diz em voz de falsete. Pois sim! É moleza mesmo. Preguiça. Pára em tudo quanto é lugar e eu aqui querendo saber as novidades. Falta de consideração. Não acha, João?
            João nem respondeu. Lá fora, o ambulante grita “olha o mate!” O aviãozinho passa arrastando uma enorme faixa com o nome de um político qualquer.
            — Esse ano vai ter eleição. Dessa vez eu vou votar. Estou gostando muito do candidato da oposição. Tem cara de bom moço, estudado, mulher, filhos pequenos. O país está precisando de alguém assim. Aonde está a minha bandeira, João? Você a viu em algum lugar? Não? Também você não sabe nada! Acho que está guardada na mala grande em cima do armário. Lembro quando o Tancredo entrou, que Deus o tenha, fui com tudo para Cinelândia, ver o povo feliz. Eu vestia uma bermuda branca, blusa amarela com folhas verdes pintadas e levava a bandeira. Uma festa. Bons tempos... Você precisava ter visto. Mas João Sebastião não parecia muito interessado.
            A moça de fio dental, rebola desfilando pela areia da praia. Pouca vergonha!, acha Dona Madalena com um muxoxo. No meu tempo... Finalmente toca a campainha.
            — Boa tarde, como estamos hoje?
            — Está atrasado, responde de mau humor.
            — Muitas quentinhas para entregar, Dona Madalena — ela olha de soslaio para João com cara de “não disse”? — Estamos cheios de pedidos. Até a mulher do 802 quis comida hoje! Devem ter cortado o gás, explica o garoto de seus 17 anos, enquanto se movimenta ao som de alguma música que sai do seu walkman. Veste bermudão, chinelos de dedo e camiseta. O boné puxado para trás está rasgado do lado.
            — Cinco quentinhas para o 209!
            — O que eles pediram? Interessa-se.
            — A mesma coisa que a senhora: frango ensopado com batatas, arroz, feijão e salada à parte.
            — Ah...
            — Tô estranhando o Seu Libório do 507... 3 dias já que ele não pede nada. Será que morreu? Aquela tosse... sei não.
            — ...
            — O dia está lindo, Dona Madalena, porque não vai passear? Sair um pouco?
            — Amanhã eu vou, disse sem muita convicção. Mas e a inflação, hein? Como subiu!
            — Tudo pela hora da morte Dona Madalena, não sei como vai ser... é a crise. Uma coisa, balança a cabeça.
            — Você viu o caso da moça estuprada? Foi aqui no prédio ao lado! Meu Deus, aonde vamos parar?
            — Pois é, Dona Madalena, é a violência... cada dia pior. E a poluição? A praia... suja que dá dó. Não dá nem para tomar banho.
            — Um absurdo! Quando eu era mocinha a água era tão limpa que os peixinhos vinham morder a minha canela, fazendo cosquinha. Eu tinha as pernas grossas! Fazia um sucesso de maiô, precisava ver, sorriu nostálgica deixando entrever uns dentes muito amarelos de nicotina.
            O menino olhou para aquela mulher de cabelos desgrenhados e grisalhos. O roupão de andar em casa com minúsculas florzinhas azuis e verdes, puído e descosturado, parecia grande demais para o corpo magro. Os pés estavam enfiados em uns chinelos bordados com fitilhos dourados que deixavam escapar as unhas muito compridas e sem manicure, pintadas de um rosa escuro descascado. Suas mãos brancas e encarquilhadas tremiam levemente e ele duvidou que ela tivesse sido jovem e bonita um dia.
            — Bom, já vou Dona Madalena. Muitas quentinhas para entregar.
            — Espere, disse. Abre a gaveta do console e retira uma nota muito usada e dobrada em quadradinho. Hesita alguns segundos e, então, pega outra:
            — Wellinton, diz com voz infantil, será que você podia trazer amanhã aquele doce que eu gosto? Aquele da padaria da esquina, cheio de creme amarelo e com um morango no meio? Morango, hein? Depois resolveu: se não tiver morango pode ser com aquela uva verde. Mas com açúcar salpicado por cima, não esqueça. Entregou-lhe o dinheiro.
            O menino olhou-a desolado.
            — Tá  bom Dona Madalena. Mas a senhora devia sair de casa. Passear, se distrair...
            A mulher dá de ombros, fecha a porta. Olha em volta da sala, tudo no lugar. Pousa a quentinha no mármore da pia da cozinha, ainda é cedo, nem começou a novela da tarde. Conversa com  João:
            — Amanhã eu vou sair.. Você vai ver só. Vou usar aquele vestido vermelho de estampa miudinha que eu usei no casamento da Aninha, lembra? Aninha, tão boazinha... liga toda semana. O sapato branco de saltinho, combina? Acho que sim... Devo levar o chapéu? Aquele molengo com as margaridas coladas na aba? Devo. Com esse sol... não é bom arriscar. Vou passear na praia, chupar picolé de coco. Há quanto tempo, João, não chupo picolé de coco? Aproveito e passo no Seu Cristóvão. Sabe quem é? O sapateiro.  Deixei lá, há anos a minha sandália de tirinhas vermelhas para consertar. Lembra? Aquela que arrebentou quando o taxi quase me atropelou. Quando foi mesmo? Nem sei. Vou na padaria e compro um doce. Um, não! três! Um só para você!
            João Sebastião, o gato preto e branco, se estica todo, salta no buffet de jacarandá com cuidado para não quebrar a bailarina de louça, olha para a mulher que anda para lá e para cá, planejando atravessar a sua fronteira e boceja duvidando.

Daisy Melo

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