Deixei-me embalar pelo ritmo arrebatador da marimba. Olhei enfeitiçado
para os dançarinos que saltitavam com os chocalhos presos as pernas.
Dançavam eufóricos.
A terra também dançava com a vibração do
sol e as árvores balançavam levemente ao vento que animava
à tarde festiva.
Era a primeira vez que alcançava aquela terra recôndita
da minha província.
Foi tomado por uma sensação de paz e tranquilidade, estava
em contacto directo com o meio rural. O ar fresco, revigorou meu espírito
vítima do stress urbano.
Estava cansado mas animado. Percorri, seguindo o meu guia Samuel mais
de dez quilómetros, desde a paragem do chapa até ao centro
da vila, fiel a Samuel que dizia:
É aqui perto sempre que eu perguntava se ainda faltava muito.
Senti um seco apertar-me a garganta, estava com sede, também
já tinha engolido bastante poeira levantada pelos dançarinos
que pulavam incansáveis repisando o solo duro, onde concerteza habitava
uma população de matequenha (*).
Procurei Samuel por entre a multidão de espectadores. Descobriu-o
dançando, contaminado pela emoção popular. Aproximei-me.
Fiz um sinal. Não me viu. Pulei acenando. Mesmo assim não
me viu.
Samuel, Samuel!!! gritei.
Meu chamamento misturou-se com ritmo, e a dança ganhou nova
dinâmica
Entretanto Samuel continuava animado.
Caminhei por entre a magote até alcança-lo.
Cochichei de mansinho a Samuel. Convidei-o à acompanhar-me a
um lugar mais calmo.
Samuel, quando irá solicitar ao régulo autorização
para explorar-mos a terra que ele manda? questionei.
Menino, só depois desta cerimónia acabar é que
o régulo nos poderá atender.
A propósito, a que se destina este ritual?
Para homenagear os espíritos, por terem dado uma boa colheita
de arroz.
Estou com sede afirmei de seguida.
Samuel desapareceu, para depois aparecer oferecendo-me água
de lanho. Bebi penosamente, imaginando uma cerveja bem geladinha.
Mergulhei cerveja adentro e lembrei-me que estava ali para encontrar
uma solução para a desgraça que desatinava minha mente.
Nos últimos dias, minha vida era um inferno. Tinha visões
com uma criatura gigantesca que se assemelha a uma árvore.
Quando contei a minha mãe ela não se surpreendeu.
Meu filho, finalmente chegou o dia. começou ela serena
O teu pai queria tanto ter um filho varão por isso prometeu
a terra onde nascesses que plantaria uma árvore e cuidaria da tal
árvore, como se fosse um filho. Quando nasceste teu pai fez uma
grande cerimonia e plantou a tal árvore. Realmente cumpriu com o
prometido até completares cinco anos. Depois ele faleceu.
A morte de teu pai abalou muito minha vida e eu resolvi abandonar aquela
terra.
Passaram-se quinze anos desde que viemos para cá e um dia tive
um sonho com teu pai, lembrando-me da árvore que plantara na sua
terra natal.
Não te queria assustar e por isso contive-me durante esse tempo
todo, pensava que tinha passado.
Um bando de corvos crocitou fazendo-me despertar da minha reflexão
O régulo Matimate, anunciava com autoridade um comando qualquer
que me era imperceptível. Ele fazia-se destacar pela vestimenta
peculiar que trajava.
Os marimberos suspenderam as baquetas no ar e os batuqueiros
experimentaram as últimas batidas. Todos imobilizaram-se. Um puto
atrevido ainda tentou brincar, mas foi fuzilado com o olhar vítreo
de um ancião.
O silêncio parou por ali. Deviam estar a dizer uma prece
para os seus ancestrais, deduzi.
Depois o régulo bateu palmas com autoridade. Senti inveja, gostaria
de ter aquela autoridade, pois lá cidade não passo de um
simples empregado que tem de aturar o desaforo do patrão que me
humilha em frente aos clientes.
O sol põe-se por detrás das montanhas, espalhando pequenos
focos de luz dourada sobre Uila.
A apoteose atinge o auge, quando o régulo faz oferendas aos
espíritos.
Depois seguiu-se a hora do banquete. Todos se deleitam com os manjares
e eu com uma donzela de peito nu que serve o régulo. Delicio-me
com os seus seios tesos que me fazem esquecer por completo a razão
da minha viajem até Uila, esta terra desconhecida.
O meu desfrute é interrompido quando oiço o meu nome
articulado por Samuel.
Caminho em direcção a este embriagado pela visão
suprema daquela negra monumental.
Quando alcanço Samuel, percebo que ele está em frente
do régulo, pela primeira vez, vejo este homem de perto, ele olha-me
firme sem esboçar qualquer reacção perante a minha
presença.
Tremo, procuro imitar as vénias que Samuel fizera, desequilibrei-me
e se não cai, foi porque régulo Matimate em pessoa me amparou,
senti a sua mão calejada segurar o meu ante braço magro onde
ficava visível a tatuagem de uma serpente.
Fica a vontade meu filho! afirmou majestosamente, num sotaque distinto.
Fiquei intrigado, com a maneira distinta como ele se expressava. Este
homem era completamente diferente daquilo que imaginava.
Sou neto de Kembe, filho de Dabo afirmei
Sei quem tu és meu filho, e porque viajaste desde da cidade
até esta terra longínqua.
Vens em busca de paz de espírito meu filho.
O conhecimento supremo deste homem, sobre minha realidade, deixara-me
num misto de imbecilidade e estupefacção.
Retomei a realidade no momento em que Matimate cingia-me um colar de
missangas em volta do pescoço.
Passarás a noite naquela palhota e de madrugada poderão
continuar a vossa caminhada.
Obrigado senhor régulo! agradeci com humildade.
Junta-te a nós no banquete, vem beber sura. Aceitei sem delongas.
O breu cobria toda a terra, pirilampos reluziam ali e acolá,
oferecendo seu brilho numa disputa desigual com as estrelas.
Depois de uns bons copos de sura, experimentei uma embriagues leve
que me deixou desinibido.
Agradeci ao régulo o apoio que me prestara, desta vez consegui
improvisar, umas boas vénias.
Não vi Samuel por perto e nem me importei, caminhei em direcção
a palhota. Lembrei-me com saudade da negra de seios tesos, se não
podia tê-la nesta noite de céu brilhando de estrelas e pirilampos
reluzindo ali e acolá, que pelo menos sonhasse com ela mendiguei
aos espíritos de Uila.
Transpus a porta e descobri a esteira cercada de objectos de adornos
onde eu tinha de me deitar. Senti um calafrio povoar meu corpo. Recompus-me
e embarquei num sono restaurador, não sei se sonhei.
Pela madrugada Samuel me despertou.
Vamos!
Bocejei relaxado, antes de me levantar.
Menino esta ferido? inquiriu Samuel alarmado
Não, porque?!!
Sangue na esteira!
Sangue?!!
Realmente deparei com uma mancha avermelhada cobrindo uma porção
da esteira. Ignorava por completo as origens do sangue, talvez tivesse
uma hemorragia nasal durante a noite. No entanto a duvida prevaleceu nas
nossas mentes.
Iniciamos nossa caminhada. A terra estava toda coberta de cacimba,
oferendo uma brandura virgem. Samuel caminhava na vanguarda desvirginando
a neblina, e eu como sempre seguia no seu encalço.
Tínhamos já percorrido uma boa distancia quando fomos
interpelados por um vassalo de Matimate.
O régulo pede para voltarem.
Como voltar? questionei preocupado
Não sei!!!
Regressamos, agora eu na dianteira impulsionado pela curiosidade.
Apresentei-me a autoridade de Uila com pressentimento estranho.
Como esta João?
Bem!! respondi pouco a vontade.
Temos um pequeno problema e antes de resolvermos não poderão
continuar com a vossa viajem.
Qual é o problema?!!
Dormiste com Midanga?
Dormi com quem?
Midanga!!!
O régulo, fez aparecer que nem um passo de magia, aquela negra
de me fizera divagar por um mundo maravilhoso.
Esbocei um sorriso corriqueiro, antes de firmar uma resposta.
Não sei!!!
Como não sabes meu filho?
Só me lembro que sonhei com ela!!!
Ahhhh!!!
Uma gargalhada colectiva expelida pelos presentes atingiu mortalmente
meu espírito, mas consegui manter-me de pé.
Midanga arregalou os lábios carnudos num sorriso sedutor.
Terás de casar, porque lhe tiraste a virgindade, assim manda
a nossa tradição.
Estava atordoada pela anuncio emitido pelo régulo, nunca me
passara pela cabeça que tivesse que casar neste terra. Era evidente
que estava completamente seduzido por Midanga, não só pelo
sorriso que ela exibia, ou os seios que eu vira, mas também pela
ideia de a ter possuído sem consciência naquela noite alcoviteira
onde os pirilampos reluziam ali e acolá na disputa implacável
com as estrelas. Tinha que casar estava determinado, uma decisão
irrevogável proclamada pelo régulo, sem lobolo ou anelamento,
assim mesmo, de hoje para agora.
Lembrei-me de Odete, minha querida namorada, que ficara deambulando
pela cidade, apreciando montras, em busca do melhor vestido para ela se
indumentar no dia do nosso pedido de casamento.
Mas que contratempo, sem aviso prévio dos serviços
espirituais cogitei ao mesmo tempo que coçava o cocuruto.
Um ritual singelo marcou a nossa união.
Fiquei mas uma noite em Uila com Madinga nos braços rebolando
na esteira, oferecendo mil carícias que ela retribuía com
amor.
Fiquei preso nas minhas origens, queria redescobrir a terra que me
vir nascer, encontrar a árvore que meu pai plantara, amar Madinga
e esquecer a cidade que me roubara a alma.
Alex Dau
(*) Nome dado a doença causada por uma pulga feminina de nome científico Tunga penetrans, doença conhecida no Brasil como Bicho do Pé