O ar estava parado, calmo.
Subitamente, um movimento quase imperceptível acorda o final
da tarde e mergulha na barreira
invisível. Foi inapelavelmente capturado. Em vão tenta
debater-se na estranha areia movediça. Quanto mais esperneia, mais
preso fica no visgo traiçoeiro.
Ela percebeu a vibração do ar, saiu rápida do esconderijo e aprisionou a vítima. Embalou-a como a uma múmia - braços fortes, precisos. Manteve-o vivo, ainda respirando e em leves contorções.
O ar já vibrava novamente, a luta insana não dava tréguas. Caminhou certeira entre o labirinto até atingir a outra extremidade da barreira. Lá estava outro infeliz a se debater em desespero. Agiu calmamente, como fazia todos os dias. Deixou que ele se envolvesse até não mais haver escapatória. Depois repetiu o ritual como máquina programada - gestos ligeiros - como te elã fiando ao tear. Guerreira implacável, poucos lhe escaparam vivos.
Postado em meu esconderijo, fiquei cerca de meia hora a observar - talvez um pouco mais. Estava fascinado pela volúpia dela, pela forma sorrateira com que se escondia à sombra, aguardando paciente pelo próximo incauto.
Não me tomou mais que parcos minutos, e logo vislumbrei outro corpo em torções nervosas. Quis ir em seu socorro, mas alguma coisa em meu íntimo brecou-me o impulso - não sei se instinto, ou crueldade fetal. Algo em meus mais recônditos segredos manteve-me paralisado, sorvendo em prazeres o desfecho cruel. A visão daquele espetáculo aterrador trazia-me a outras eras.
Vi-me em trajes bárbaros, a decepar cabeças e dilacerar corpos. Nem um cisco de compaixão nos olhos, nem o menor senso que me pautasse um gesto sequer. Apenas um agir violento e eficaz - mais um corpo rolava pela terra úmida de sangue.
A luta era inevitável - vivia e matava, ou da vida não escaparia. A crueza do ambiente ríspido era forrada pela guerra diária. Não distinguia entre inimigo e caça. Matava-os a ambos. O inimigo vencido era a oportunidade de buscar na caça o alimento. Comia com as mãos, num destrinchar de carnes e ossos, entre grunhidos esfomeados. Nenhuma piedade, nenhuma razão, somente um sobreviver - essa era a lei.
Voltei daquela breve regressão de, quiçá, alguma vida passada, e continuei o devaneio daquele crepúsculo. Via agora que grande atividade havia naquele canto de mundo. Oito, talvez dez corpos agonizavam ao redor dela. De todos cuidava com o mesmo carinho, com a mesma delicadeza. Era como uma dança macabra, de enorme monstro a cair sobre indefesos pigmeus. Não havia pausa para reflexão; a rotina dominava-lhe os passos, como atriz que encena a peça à exaustão. Sentia-lhe alguma vaidade, mas isso seria impossível a tão voraz fêmea.
Um deles escapou-lhe, e despencou abismo abaixo. Foi o único momento em que, pareceu-me, ela mostrou alguma emoção. Meu olhar atento percebeu-lhe as pernas esguias contraírem-se.
Sim, eu podia ver, ela não
seria tão indiferente quanto imaginei. Reagiu, mostrou sua ira.
A trama toda vibrou diante daquele
movimento dela. Todo aquele espectro de seres mumificados balançou
como roupas num varal.
Fiquei ainda alguns minutos a contemplar a cena, fascinado pela elegância feminina da feroz dama.
Alberto do Carmo