Eu
demorei um certo tempo até notar a importância daquele objeto
na parede do quarto. O espelho, antes ausente, agora marcava sua presença
e fazia ressalvar sua obstinação. A minha rotina repetia-se.
E já fazia umas sete horas que eu estava sentado a minha frente.
Nunca entendi a relação daquele encontro e decidi acreditar
em sincronicidade. Até mesmo os grandes descobridores fizeram suas
descobertas ao acaso. A rotina, antes dominante, não me incomodava
mais, agora que eu havia o encontrado. A luz que vinha do abajur do fundo
do quarto criava um reflexo que desenhava formas e riscos, confesso
interessante. Sem contar que a visão dos móveis antigos e
velhos, desmoronando de podridão e cupim, das paredes descascadas
e já sem cor, do colchão no chão e das lâmpadas
amarelas era simplesmente fantástica, incomparável a simples
visão normal das coisas. Demorei um pouco até notar aquele
pequeno ser sentado no canto esquerdo da parede e, no início, desconsiderei
a presença daquele olhar e nunca imaginei a falta que ele iria me
fazer.
Quando cheguei, ansioso, cansado do dia de trabalho nos porões,
passei rápido por baixo do chuveiro, me contendo em nem espiar ao
espelho, para resguardar a surpresa e depois contemplá-lo incessantemente.
O banho frio me trouxe ânimo e uma pneumonia, que eram coisas banais
ante o meu presente contentamento. Estava no meu lugar, naquele onde a
observação é mais nítida e ele não demorou
muito para ele chegar. E, como sempre fazia, aparecia devagar, lentamente.
E logo tomava sua forma perfeita e indelével. O nosso olhar se cruzava
fácil e o entendimento era perceptível. Eu admirava o teor
do seu olhar e sua respiração lenta e elegante – eu, obeso,
até me envergonhava – e a imponência com que contemplava o
outro lado. Seu tom era gentil e cordial, logo via-se que era gentil e
educado, resultado da boa formação, concedida pela sua família.
Nestes anos, suas roupas eram sempre elegantes e bem alinhadas, ao contrário
dos meus panos rasgados e sem ostentação, e da minha enorme
barriga.
O ser do espelho, vamos assim definí-lo, esse sim era um exemplo.
De conduta, de presença e vivência, esse sim, sabia aproveitar
a vida mesmo. Eu, talvez nunca tenha o que ele tem, mas agüentarei
com insistência o alcatrão que a vida me oferece e me contentarei
em observar que temos o mesmo rosto e agradecerei por ele me observar tão
exaustivamente.
Se o espelho não tivesse se quebrado, até acho que ele mesmo
quebrou o espelho por se cansar de mim, estaria ainda ali, contemplando
essa observação e esperando o dia que nos conheceríamos.
Não sosseguei até remontar e colar todos os pedaços
do espelho e, após todos esses dias, ele nunca mais apareceu. Observo
meus pensamentos volatilizando e a última coisa que vi antes de
ser sugado foi a sua sombra, gentil e perfeita, que até hoje, não
tenho realmente certeza.
Felipe Karasek