Os 7 pecados capitais

                Ambrósio de Açucena tinha 1 metro e 85 e pesava 110 quilos. Pele alva, faces rosadas, cabelo amarelo como boneca de milho, lábios finos, com muitos pêlos, espessos, nas sobrancelhas e saindo de dentro dos ouvidos. Sotaque gaúcho. Tu aqui, tu ali. Fosse mineiro seria tutu com couve, uai. Acontece que gaúcho é assim, também tem seu sotaque, seu dialeto. Bá, tchê, tu vai, tu pode, tu vem ao churrasco, índio velho? E deu pra ti?! Minha nossa!
                De todo modo, iam longe os dias de Ambrósio desde a última estada na terra natal, no interior do Rio Grande do Sul. Viveu pouco tempo da primeira infância no pé das serras pampeiras. Logo, logo, a família toda, com a morte prematura do pai ocorrida por um coice de cavalo no meio da testa quando contemplava o horizonte das coxilhas, mudou-se para o centro nervoso de São Paulo.
                Mudança brusca e repentina, necessária, porém, para afastar os guris e gurias da querência repleta da presença paterna. Foram embora todos. Leopolda, a mãe, com as crias. Ambrósio de Açucena era a raspa do tacho, o sétimo filho. Quando nasceu, Leopolda, sob orientação médica, fez laqueadura para nunca mais parir gente alguma.
                Os contatos com o Rio Grande Amado resumiram-se, no início, aos encontros dominicais no CTG. O Centro de Tradições Gaúchas trazia de volta, ainda que por um curto período de tempo, todo aquele sentimento gaudério pelas milongas cantadas e dançadas no salão. Brasa estalando no fogo de chão. O sal grosso no tempero do churrasco. E haja novilhas e espinhaço de ovelhas! O cheiro forte de mate. A cuia de chimarrão passando em roda.
                Mas a família, unida, no final do dia sentia-se solitária, sem o norteador da bússola. Aquela coisa toda de domingo dava mais tristeza que alegria. A ausência fazia muita falta e por isto foram todos, aos poucos, deixando de comparecer ao CTG, transferindo o lazer dominical para os passeios no Parque Ibirapuera. Freqüentar feiras, irem ao cinema, fazer qualquer outra coisa que não trouxesse tanta lembrança assim daquele já partido desta para a vida desconhecida.
                Ambrósio de Açucena, por ser o caçula, era sempre arrastado. Ia pelos puxões de braço que levava da irmã mais próxima a ele, a Elvira.
                - Ô mãeêêê! Olha esse guri aqui de novo. Ta empacado, guri! – Reclamava a irmã.
                Assim foram vivendo em São Paulo. A mãe, de sangue severo, a laço e espora, criou todos eles. Aliás, de registro importante o fato de Leopolda ter desmamado os sete filhos na cuia de chimarrão. Ambrósio cresceu e ficou alto, lá de cima do seu metro e 85. A estrutura física, no entanto, sucumbia à educação e cordialidade do brutamontes, sendo estas as razões pelas quais passou a ajudar um dos irmãos marista no colégio responsável por sua formação escolar. O Colégio Marista.
                Igual a todos os irmãos, Ambrósio, recebeu educação escolar no Colégio Marista e quando se formou em pedagogia foi agregado aos quadros de ensino dos discípulos de Marcelino Champagnat. Mas o ofício a ele incumbido resumia tão somente no interior da secretaria, prestando informações, fazendo arquivos de papéis, recebendo pedidos novos de matrículas, conformando-se com transferências precipitadas, postando comunicados aos pais dos alunos e outras tantas tarefas administrativas necessárias ao desempenho de qualquer colégio. A pedagogia não foi exercida na sala de aula. Ávido pesquisador e doutrinador de assuntos estranhos. Em reuniões de família, amigos ou colegas de profissão, iniciava os desafios febris com questões sem respostas:
                - Especial, tchê! Tu imagina o seguinte: caiu uma árvore lá no Amazonas e não tem ninguém por perto para ouvir o barulho que ela produziu. Então eu te pergunto, tchê: o som que ela fez existiu ou não? – Ria feliz ao término da insólita pergunta e tomava com a mão direita seu copo de vinho tinto, numa golada só sorvia o líquido vermelho rubro.
                Todos sempre respondiam que sim e ele, ainda feliz, entregava o copo sobre a mesa e se deliciava no labirinto intrépido de suas questões filosóficas: - Mas, bá tchê, como existiu o barulho se não tinha ninguém lá para ouvir? O barulho se propaga no ar até onde sua velocidade alcança, depois ele some, mas fica produzindo suas inaudíveis ondas. Se não tem ninguém para ouvir, não tem som, tchê. – Outra golada de vinho.
                Aluno que foi, funcionário que passou a ser, Ambrósio freqüentava os cultos religiosos. Ao lado das indagações filosóficas que fazia, também um apaixonado pelos grandes debates e assuntos bíblicos. Não tinha um tema sequer sem sua indagação, visão, opinião ou crítica. Dentro das limitações de sua consciência ou seu poder de persuasão, via-se empolgado e fascinado por tais temas.
                Mas de todos eles, filosofia ou religião, tinha fascínio hipnótico, pelos 7 pecados capitais. Criou em seu interior uma necessidade premente, uma fixação insana, de encontrar um exemplo, um exemplo só que fosse absorvendo todos eles de uma única vez. E desafiava amigos, irmãos, irmãs e sua mãe. Evitavam falar deste assunto com o Ambrósio. Não podia ouvir dizer sobre pecados, muito menos capitais, e ai, ai, ai, se fossem então os 7!!! Ele vinha com toda sua tese, a teoria bíblica, os ensinamentos aprendidos na escola e na igreja. Com sua angústia interior de explosão humana em busca de respostas.
                De cima de seus 38 anos de idade, Ambrósio de Açucena, era solteiro. Tinha tido alguns casos aqui, outros ali, mas nenhuma guapa capaz de reduzi-lo à miserabilidade do amor. Quando bebia muito, sempre vinho tinto para resgatar a memória da querência, revolvia o tema dos pecados e antes de desandar o discurso costumava dizer: - Sou cavalo indomável, tchê! E estou à meia guampa, mas já, já, fico gato e não enjeito parada dura. Berro como um touro com qualquer um aqui para dizer não existir uma única coisa que possa resumir os 7 pecados capitais. Na verdade 1 pecado já é pecado, não precisa de 7. Quem comete 1 comete 7 e quem comete 7 já cometeu 1 só, tchê. – Sorvia o vinho tinto vindo do Vale dos Vinhedos.    Primeiro foram aqueles tais Forestier, depois passando pelos tintos da Casa Valduga, Miolo e por último o frisson etílico produzido pela Casa Don Laurindo. Apenas vinho nacional, tchê.
                Um dia, Ambrósio de Açucena encontrava-se dentro de uma livraria. Procurava lendas gaúchas. Percebeu ao seu lado uma mulher pequena, cerca de 1 metro e 56. Pouco mais de 20 anos de idade. Vestia roupas coloridas, tinha trancinhas com penduricalhos nos cabelos dourados, 1 pinta na testa, constelações de pintas pardas no peito e uma máquina fotográfica digital pendurada no ombro esquerdo. Ela também buscava livros sobre lendas, lendas brasileiras.
                A vendedora de livros veio do depósito, esbaforida, parecendo ter tirado o pai da forca, com um enorme livro seguro pelas mãos. No meio de seus 2 clientes, desconhecidos entre si, ela disse com cansaço na voz: - Ufa! Demorei um pouco, mas encontrei. É o último exemplar de lendas brasileiras que temos. Aqui tem lenda do Piauí ao Rio Grande do Sul. Talvez vocês tenham que tirar no palitinho, ou então xerox, ou fazer como aquela história que todo mundo conhece da justiça de Salomão: rasgar o livro ao meio, como o nenê que seria partido para repartir com as 2 mães que reclamavam. Sei lá. Vocês que sabem. –
                Lado a lado estavam há algum tempo e sabendo da posição geográfica lateral que ficaram, entreolharam-se bem no fundo, quase vendo o fundo da alma um do outro, foi então que a moça das trancinhas, voz misturada com rouquidão e suavidade, sem saber, disse: - Ai, isto é um pecado! Um livro só?! – Por um momento Ambrósio ficou tomado de surpresa, depois de felicidade por ter ouvido a palavra mágica – pecado –. Não tinha vinho, tinha livros. A vendedora de livros afastou-se segurando o último exemplar disputado e sentando na poltrona na frente dos duelistas. Apareceu da boca do Ambrósio toda a história dos pecados, em seguida os 7 pecados capitais. O desafio feito e ninguém nunca tinha alcançado vitória. A moça das trancinhas de um gesto feminino conseguiu silêncio de seu opositor e disse:
                - Galinha.
                - O quê?! – Perplexo, franziu a testa alva juntando aqueles montes de pêlos espessos das sobrancelhas.
                - Galinha, oras. Você está falando de galinhas.
                - Bá, tchê! Mas é claro que não. Estou falando dos 7 pecados capitais. Tu não conhece? – Meio ira, meio sarcasmo, o sotaque gaúcho firmou presença.
                A moça das trancinhas riu. Os sotaques de ambos eram inconfundíveis e ela tornou a dizer:
                - Sei exatamente o que falou. E eu simplesmente disse a você: galinha. Os 7 pecados capitais se resumem em galinha. G – a – l – i – n – h – a. Ga-li-nha. Você que não entendeu. – Ela começou a rir sem parar. Parou quando percebeu seriedade no semblante de pele alva e bochechas rosadas daquele imenso gaúcho à sua frente. Para relaxar a conversa ela mudou o assunto:
                - De todo modo somos os 2 do Rio.
                Ambrósio sentia sua selva interior fazer barulho. O barulho que não existia. A filosofia barata sempre repetida em seus encontros. Mas agora, como bom gaudério, deveria agüentar o tirão como ele mesmo se dizia por dentro. A lábia da guapa estava lhe dando uma sensação estranha. Nunca conhecida.
                - Bá, tchê! Não parece que tu seja do Rio Grande Amado!
                - E não sou. Sou do Rio de Janeiro de amor. Copacabana princesinha do mar. Gosta de bossa nova?
                - Gosto, tchê. Mas prefiro as milongas gaudérias.
                Silêncio. Olhos nos olhos. O Rio Grande do Sul, das coxilhas, no Rio de Janeiro onde ela é linda de mais.
                - Por que galinha? – Querendo retomar a charla como se tivesse na direção do assunto. O assunto, sem saber, já tinha perdido. A selva interior começava a arder.
                - A galinha parda causa inveja na galinha alva. A galinha avarenta morre miserável. A galinha irada se oferece para rituais de magia. A galinha gulosa explode de tanto milho. A galinha soberba tem ovos com casca amarela e diz que são ovos de ouro. A galinha preguiçosa não trepa. A galinha luxuriosa passa a vida trepada. –
                A vendedora de livros desenha um largo sorriso no rosto. De boca grande, o sorriso quase alcança as extremidades de cada um dos lóbulos da orelha. Levanta de sua poltrona e diz:
                - Senhor, sinto muito. A moça aqui venceu. Ela leva o livro. Toma – entrega o tíquete de pagamento – pode pagar no caixa e pegar no outro balcão, aquele da saída. –
                A moça das trancinhas sorri para o alto do metro e 85 do Ambrósio de Açucena e cumpre o roteiro dado pela vendedora de livros. Ambrósio, inerte, hipnotizado, apaixonado instantaneamente que ficou pela imagem sedutora, primeiro física, depois qualquer coisa de dentro das labaredas de sua selva interior, vê sumir fora da livraria paulistana aquela que desmontou sua filosofia barata.
                Anos mais tarde, bem longe do tempo paulistano, da moça de trancinhas, dos pecados bíblicos e de todas as outras coisas, menos os vinhos tintos, os churrascos, as milongas e as poesias gaúchas, Ambrósio de Açucena, com parte de sua selva interior desbastada, contempla o horizonte das coxilhas, no mesmo local onde seu pai levou o coice mortal na testa.

Carlos Alberto Francovig Filho

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