Por aí, a procurar!

Miltinho era um destes rapazes que possuía uma carreira razoavelmente estável. Tinha lá pelos trinta e cinco anos e morava com os pais, pois mesmo que já tivesse conhecido bastante garotas interessantes e até prometido casamento para algumas delas, preferia ficar solteiro e curtir as mordomias da família.

Gostava de aproveitar a vida, sair no final de semana e viajar com alguma gata que conhecesse. Mas não era do tipo mulherengo, era até fiel. Apaixonava-se, conhecia a família, almoçava na casa dela aos domingos, ficava até altas horas assistindo tv no quarto da moça, viajavam juntos, comprava presentes caros, trocava confidências e segredos, mas quando ficava tudo muito sério, saía fora.

Não era um sujeito inconseqüente. Pensava muito e fazia terapia há alguns anos. Sua terapeuta havia lhe dito que poderia ter alta, porém ele gostava de falar de si e entender-se melhor. Já sentia um certo prazer aos insights que tinha durante aquelas sessões. Então, não podia ficar sem elas. O máximo que ausentou-se das seções foi duas semanas e não gostou da sensação.

Como poderia ser tão reflexivo e ao mesmo tempo tão volúvel? - perguntava-se ele.

Não  havia ainda encontrado a resposta, fato que o incomodava. Não era por isso, porém, que continuava com a terapia; a verdade é que desde os livros de Freud e Lacan que seu pai lhe deu para ler, ele gostava da teoria, e também da prática, ou seja gostava de analisar-se, e continuaria a fazer isso, com a companhia da terapeuta, sem precisar se incomodar sozinho.

Um belo dia, andando no seu belo carro esporte último tipo, ouviu na voz de Cartola o trecho da música que dizia: “deixe-me ir, preciso andar, vou por aí, a procurar, rir pra não chorar”. Miltinho reviveu o prazer do insight e percebeu que ali poderia estar a “saída” da sua vida, ou seja, se encontrar!

Quantas pessoas já tinham ouvido que queriam se encontrar.

O que é isso? – perguntou a terapeuta.

O que você acha que é? – respondeu. Miltinho sabia que aquela resposta era mais do que esperada. Gostaria de entender porquê essas eram sempre as réplicas da sua  interlocutora preferida.

A questão não parava de martelar sua cabeça. Assistiu alguns filmes do Woody Allen e outros alternativos em um pequeno cinema. Leu livros e até aos tais de auto-ajuda recorreu, sem se satisfazer com nenhum deles.

Talvez a saída estivesse na própria letra da música: sair por aí, procurar. E foi isso o  que começou a fazer. Passou a ficar mais atento aos seus pensamentos, sentimentos e outros sinais da vida. E como em uma missão, resolveu fazer uma viagem até a casa em que morava com seus pais, na infância. Quem sabe a resposta poderia estar lá? Ou quem sabe, encontraria alguma dica. Sentia-se como Alice no País das Maravilhas.

E lá foi ele, desta vez só, sem ninguém para acompanhar. Seus pais, namorada do momento e amigos não entenderam aquela viagem solitária e repentina. Ele também não se deu ao trabalho de explicar. Pegou todos os discos de música brasileira, principalmente os de “der de cotovelo”, livros, água mineral, pacotinhos de batata e, de tanque cheio, partiu para a sua turnê.

Apesar de muita gente achar desagradável estar só, Miltinho saboreou estes momentos, em que dialogou consigo mesmo, compreendendo um pouco mais do seu presente e do que se passava dentro dele. Cercado de outras pessoas, ou mesmo ao lado de uma única a mais, esta conversa não acontece, porque é impossível ouvir-se a si mesmo somente quando se precisa ouvir também o outro.

Finalmente, chegou na cidade onde morava e foi tentando rever os lugares em que esteve quando era menor. A primeira escola, a igreja que iam aos domingos, a rua da casa dos falecidos avós, o cinema que levou as primeiras namoradinhas, a casa dos amigos, a praça em que soltou pipa, a sorveteria de todos os sábados, o cemitério onde foi enterrado um tio querido que faleceu muito jovem, o terreno onde ficava o parque de diversões ou algum circo itinerante. Eram lugares tão conhecidos e ao mesmo tempo tão estranhos!

Por fim, parou em frente a casa. Era tudo muito diferente. Não existiam mais as árvores que pareciam tomar todo o quintal. A rua que era tranqüila, agora estava muito movimentada. Cheia de pessoais, indo e vindo. Ônibus, carros, motos, buzinas, ambulâncias, sirenes, freadas... ali não era onde morava. Não podia ser!

Bateu no portão, pois a campainha parecia estragada. Ninguém atendeu. Percebeu que estava apenas encostado e entrou, com um pouco de medo, procurando por algum cachorro perigoso. Mas não havia cachorro perigoso, na verdade não havia ninguém. A casa parecia abandonada. O mato já tomava a varanda. As portas estavam envelhecidas e algumas rachaduras sinalizavam que ninguém cuidava daquele lugar já por muito tempo.

– Como pode ser isso? Essa é a minha casa! – pensou indignado.

Foi entrando, dando a volta. Pela janela, viu o quarto dos pais, dos irmãos e o seu. A sala de tv. Tudo era tão pequeno agora, mas sempre nas lembranças parecia tão grande.

Aquele não podia ser seu quarto, havia algo errado – concluiu.

A sala de jantar estava irreconhecível, havia uma infiltração na parede e estava tudo mofado. Chegou no quintal dos fundos e o bonito ipê amarelo em que plantou com sua mãe, estava florido.

Em questão de minutos começou a lembrar-se da muda que o pai trouxera no carro, do buraco que ele e todos seus irmãos furaram no fundo e na obrigação diária de aguá-la. Reviveu quando fizeram a proteção em torno do ipê para as pessoas não pisarem durante o aniversário do irmão mais novo. Do esterco que tiveram que trazer na caminhonete do pai. Tudo era muito divertido. Agradável, parecia não haver tristeza.

Era sentir-se como Fernando Pessoa expressou: ali não havia tristeza, era só alegria, ninguém tinha morrido. Parecia que a felicidade de todos era uma coisa certa, sem dúvidas.

Foi ali que Miltinho parou e começou a sentir os cheiros da comida da mãe, da chegada dos avós, das brincadeiras com os primos e irmãos, dos sonhos, dos desejos... e se encontrou.

Encontrou com a beleza do ser humano, com o que nós temos de mais puro. A alegria de viver sem esperar. De sorrir, sem ter vergonha de criticarem o tom da gargalhada. De andar descalço, de sentir medo quando se tem medo, de chorar quando não vê o pai ou a mãe por perto, de sentir saudade quando gostamos das pessoas, de exprimir os sentimentos mais ingênuos e puros pelos amigos, de não ter inimigos e reservas com pessoas de qualquer tipo.

Miltinho sentou debaixo do ipê e chorou apenas uma lágrima, porque havia perdido aquele menino e sentiu uma certa vergonha de quem se tornara.

Será que é isso que as pessoas chamam de encontrar? – indagou-se. Talvez não. Talvez sim. Cada um deve ter o seu jeito de encontrar-se. E o dele era o de se olhar. Voltar aqui foi como se ele se olhasse em um espelho mágico, que lhe mostrasse não seu rosto, mas o que ia dentro de seu coração, o que ele era, em sua essência.

Levantou-se, voltou ao carro e deu partida, tendo os versos de Pessoa guiando-lhe o caminho de volta:

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Pára, meu coração!

Celso Faria

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