Engenho
“Quando constato que a tranqüilidade a respeito de
certas questões não passa de uma resignação
sonhadora, como se a gente tivesse pintado as paredes entre as quais jazemos
presos com as feições coloridas e perspectivas risonhas”
— (Goethe em Werther)
A charrete
seguia lenta e ela olhava para o moço, disfarçando. Era bonito,
num estilo selvagem, diferente daqueles da capital. Não parecia
notar sua presença, mas sentira o nervosismo na mão suada,
quando a cumprimentara na estação... “tão jovem para
ser cunhado de papai”...
“Você
é meu tio...” disse, de repente, assustando o rapaz.
“Não
sou seu tio, nem tenho idade pra isto...” respondeu seco, as faces em brasa.
Saboreou a vitória sobre seu mutismo com um risinho abafado. Ele
amaldiçoou mentalmente todas as mulheres, especialmente as bonitas.
“Meu tio, sim, meu pai é casado com sua irmã...” Não
tendo como refutar esta afirmação, apenas chicoteou os cavalos
na esperança de chegar logo ao engenho e escapar do embaraço.
Porque, diabos, tivera que ser escolhido para escoltar a filha do viúvo?
Não sabia lidar com as mulheres, especialmente quando tinham esta
pele de pêssego e olhos negros que o encaravam maliciosos.
Mas ela
não pretendia deixar a conversa morrer: “falta muito para chegar?”
Ele apenas
retrucou: Não.
Endireitou-se
no assento da charrete, amuada. Que rapaz antipático! Como se atrevia
a não ficar encantado com ela, como se fosse apenas uma encomenda
a ser entregue? Olhou sem ver para a paisagem ao redor, os mirrados arbustos
do sertão, os canaviais que se estendiam verdes sob o céu
azul, o sol causticante do agreste pernambucano.
“Em dez
minutos chegamos. Ali é a sede do engenho.”
Ela olhou,
viu a casa baixa, de telhas escuras na claridade do entardecer e teve pena
do caminho tão curto. O rapaz voltou a ficar calado, mas tinha consciência
da presença dela, oprimindo-o com sua feminilidade adolescente,
com seu cheiro de mulher-menina.
A charrete
parou diante da casa silenciosa, uma construção simples de
pedra e cal, telhado de carnaúba. Ao lado, o engenho, onde ficava
a moenda. Ninguém esperava por ela, não havia comissão
de recepção para a filha do viúvo da capital, que
encantara a jovem do interior, vinte e dois anos mais moça, com
seus cabelos grisalhos e seus oito filhos. Lágrimas e conselhos
não tinham adiantado.
E agora
ela estava ali, no engenho, a última, a raspa do tacho, para conhecer
os avós tortos e os cunhados do pai. Que, pelo visto, demonstravam
bem pouco interesse pela sua visita.
O rapaz deu
a mão para que descesse. Por um momento, suas mãos ficaram
presas, assim como olhar. A contragosto se soltaram.
Toda decepção
se apagou. Sabia que ele não ficara indiferente como pretendera
demonstrar.
Deste
dia em diante, estavam perdidos. Nunca mais se desgrudaram. Em todos os
cantos do engenho, explicando a moagem da cana, experimentando o melaço,
provando a aguardente, sempre juntos, o tio experiente e a sobrinha curiosa.
Dindinha,
como era chamada a terrível Don’Ana, a avó postiça,
permitia estes passeios com filosofia simples de sertaneja “ segurem suas
éguas, que meus potros estão soltos” Mesmo assim, havia sempre
vigilantes seguindo o casal, jagunços de campana, olheiros de plantão.
Jamais
uma carícia, um beijo roubado, um afago. Apenas o roçar das
mãos distraídas, as faces em fogo, olhares ardentes e sonhos.
Uma descansada mais demorada na cintura ao ajuda-la a descer da charrete,
pernas se encontrando sobre o cavalo, quando a transportava na garupa,
o corpo morno encostado ao seu, as mão enlaçando a cintura,
suprema delícia.
A menina
saboreava o triunfo feminino sobre ele com total maravilha. Deixava se
levar pelo encanto daquela conquista, onde era, ao mesmo tempo, caçadora
e presa.
Mas a velha, percebendo que as coisas começavam a fugir ao controle,
chamou a hóspede para uma conversa. Sem mais delongas, no seu linguajar
inculto de camponesa, jogou a pá da malícia no romance adolescente:
“Menina,
não vá se enrabichando por Asfredo que Asfredo não
se acoita com ninguém, Asfredo só quer é amorcegar.”
Lívida
de humilhação, ela fugiu da casa e correu pelo campo, até
o açude, tirou a roupa e se jogou na água gelada. Queria
se lavar, tirar do corpo aquela palavra horrível “ amorcegar” que
a contaminara, que tornara sujo tudo que antes era delicado, que parecia
se agarrar na pele como o melaço.
Nunca
mais olhou para ele, aceitou sua mão. Poucos dias depois voltou
para a capital.
Ele a
acompanhou na charrete, o coração pesado. Decididamente não
entedia as mulheres. Não sabia o que poderia ter feito para provocar
uma tal zanga, um tal olhar de ódio, uma indiferença tão
feroz.
Desceu
calada. Antes da despedida, o rapaz lhe entregou uma caixa embrulhada para
presente. Apanhou o embrulho, agradeceu secamente e, sem olhar para trás,
tomou o trem. Nunca mais se viram. Ela foi para o Rio de Janeiro, morar
com uma tia. Ele permaneceu no engenho, onde casou e teve filhos.
Anos mais
tarde, solteirona encruada e beata, procurando uns guardados naquela caixa,
que não tivera coragem de jogar fora, descobriu um fundo falso.
Dentro
havia um bilhete amarelado: eu te amo.
Pela primeira
vez, depois destes anos todos, ela chorou.
Maria Helena Bandeira
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