A AUSENDA
 
A única casa que ficava perto da do Louredo, era a da  Ausenda.
Casa baixa, pequena, de telha vã muito vermelha, capoeira e furda ao lado.
Terreiro curto.
Mais abaixo a horta, a vinha, e uma árvore rara - um medronheiro, trazido sabe-se lá de onde, que no fim do verão se enchia de frutos gulosos, vermelhos, suculentos...
— Não comas mais, Lurdes, senão embebesdas-te!
Ai, meu Deus, deliciosos frutinhos exóticos, fascinantes, únicos, que me ficaram  na memória das papilas gustativas e nos olhos para o resto da minha vida! Ai, esta água a crescer-me na boca com a lembrança!
A Ausenda, figura vaga, vinte e tal, rondando os trinta, era casada com o António Capinha, homem rude, jornaleiro, trabalhava onde havia trabalho e, ao  dia de recebber a jorna, bebia, chegava tarde a casa, batia na mulher que  gritava, diziam, mas não ia ninguém acudir-lhe: era um hábito e, como se dizia, apanhava ainda poucas, que "tinha um amigo"...
Falava-se, falava-se...
Que se vira o Soares, homem bem disposto, de cara larga e rosada, que se tratava  bem, dizia-se...
Dizia-se que fora visto a entrar lá em casa na ausência do António.
Que o escondia atrás da porta se alguém de fora chamava. Que andava sempre a limpar-se aos saiotes, tintos de sangue que era uma  vergonha.
O António tinha algo de misterioso que falava ao meu instinto de menina curiosa,  um fascínio: a sua voz gutural e funda.
Falava pouco, mas havia algo tão especial, arrepiante, na sua voz!
Porque é que a Ausenda não gostaria do seu homem?
Tinham um filho, o Tó Capinha, que andava na escola e que, na minha memória, me parece sempre com uns nove anos, alto e esgalgado.
Brincávamos raramente. Eu era uma garota pequena, as nossas maneiras de brincar muito diversas: ele brincava com os outros miúdos na escola, ia aos ninhos, aos tortulhos, às castanhas. Eu fazia bonecas de trapos, casinhas de pedras soltas  com muro e jardim, inventava histórias, personagens, vidas.
Lembro-me de estarmos em cima do muro, ele a desenterrar e a dizer-me que se  comiam aqueles pequeninos bolbos das cavalinhas, e eu relutante em trincá-los!
Um dia esculpiu dois animais em madeira, com o seu canivete, para levar à  professora. Eram lindos! E eu não era capaz de fazer assim! Em fúria, arremessei-lhes pedradas certeiras - ai, a pontaria que eu tinha - e, záz! Num  momento lancei-os da parede do poço para o fundo, trinta metros abissaiais,  devem ter caído nos olhos de água borbulhantes que vi maravilhada quando  conseguiram despejá-lo para o limpar.
Arrependi-me logo. Mas como remediar tanto mal?!
Como apagar dos meus olhos a imagem da cara estupefacta do Tó, ainda incapaz de chorar, os braços caídos, a boca pasmada, uma dor superior à colera?!
A Ausenda ia às vezes passar o serão à lareira da minha avó. Falavam não sei o  quê. O António ia às vezes, mas saia sempre mais cedo. O Tó cabeceava e  adormecia e elas falavam, falavam...
Por fim a Ausenda pegava no filho ao colo, as grandes botas de couro cru a  bater-lhe pelos joelhos, e levava-o, a boca entreaberta, a cabeça a balançar,  adormecido.
Eu ficava chocada com aquele mimo todo!
Mimo!
Achava um nojo, uma vergonha muito pior do que o que diziam dela, e eu meio  pressentia pelo tom das vozes, pelo falar à socapa.
Eu nunca tivera mimo!
Às vezes a Ausenda gritava:
— Sou virgem!
Falam de mim, mas sou tão virgem como Nossa Senhora!
O resto, eram queixas, queixas, queixas... que exclamações gritava ela!
Morreram: primeiro a Ausenda, ainda nova, de cancro no útero. Depois o António, de velho.
O Tó parece que veio para Lisboa e fez família.

A casinha, da última vez que a vi, pareceu-me ainda mais pequena.
Lá está, muito negra, ao abandono.

E era tudo tão grande e tão longe!

Maria Petronilho

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