O homem tem a cara das
palavras que correm em suas veias.
Zeca Loroso, era de quem se podia dizer, um falador ambulante. Era justamente o contrário do seu pai, o Zeca Ladin.
Quando a mãe do menino estava grávida dele, perdeu a paciência com a mudez do marido que quase não falava nem para responder as perguntas dela. Explodiu sua impaciência, e gritou:
_ Meu Deus, que coisa difícil conviver com esse homem!... Se Deus me ajudar, o meu filho não vai ter esse defeito!... Vai ser cheio de palavras, e não vai calar nunca!...
Dito e feito. Foi uma profecia. E no dia que ele nasceu, não falou é claro, mas a mãe com esse tipo indescritível de sensibilidade que tem as mães, percebeu que o rosto do filho tinha uma aparência de palavra.
É claro que não comentou com ninguém, mas ficou muito contente, porque achou que o filho parecia com um narrador de jogo de futebol que ela nem conhecia o rosto, mas ouvia sempre quando o mudo do marido acompanhava os jogos do seu time pelo rádio.
É bom dizer que ela
se angustiava tanto com a mudez do homem, que até gostava daquela
barulheira infernal daqueles loucos falando mil palavras por minutos, e
depois ficando um tempo enorme numa sílaba só, quando um
time
fazia um gol.
O menino, falou muitos meses antes de conseguir ficar em pé. Do momento que ele descobriu que podia dizer 'qué mamá', jamais alguém conseguiu vê-lo calado. No começo, a mãe achava a maior graça, porque ele falava mais ou menos como os narradores de futebol do rádio. Era como uma metralhadora. Falava até dormindo. E o pior, você já viu essas pessoas que pensam em voz alta? Zeca Loroso era assim.
Mas à medida que foi crescendo, o que antes era uma graça, foi se tornando um problema. Parecia ser feito de palavras. Não tinha quem conseguisse fazer com que se calasse.
Na escola, foi o orador de tudo. E ele é que contava piadas o tempo todo, e dominava o ambiente onde estivesse, porque a sua alegria era de fato contagiante. O que não dava para entender, é como é que o garoto aprendia as coisas, porque não calava momento algum para ouvir.
As pessoas que o conheciam, brincavam que ele era cheio de palavras. Outros diziam que ele tinha feito um exame de fezes e de sangue, e foi constatado uma palavrite aguda irreversível. Outros diziam que essa versão não era verdadeira, porque não tinha como fazer exame de sangue nele, porque nas suas veias, corriam letras.
Mas o menino não era todo felicidade, como aparentava ser. Não conseguia ficar calado, mesmo que quisesse. Se calasse por um momento sequer, sentia que ia explodir. Essa era a sua angústia, e a dos que conviviam com ele mais tempo.
Mas era popular entre os colegas. Era mesmo o centro das atrações. Não havia uma fofoca ou gozação, que não passasse por sua boca.
Um dia, uma das suas brincadeiras prediletas, custou-lhe um desgosto um pouco maior do que os que costumava enfrentar: Ele adorava fingir que estava falando mal das pessoas que se aproximavam do grupo onde estava sempre falando, é claro. E nesse dia, viu sua prima se aproximando, e disse aos outros:
— Lá vem minha prima. Vamos fazer uma brincadeira com ela. Depois falou em voz alta para que ela ouvisse, mas fingindo que não a tinha percebido:
...E tem mais, ela faz xixi na cama todas as noites. O quarto dela fede banheiro de presídio... Minha tia já fez de tudo, e não adianta. Um dia eu ouvi a minha tia dando a maior bronca nela, mas não tem jeito mesmo... Ela até fede urina...
Fingiu ficar sem graça quando o menina chegou, e em meio das gargalhadas dos outros, ele disse para ela:
— Oi prima, você estava aí?...
Ainda no meio dos risos, ela perguntou:
— Estavam falando de mim?...
— É!... Não!... Sim!... Quer dizer!... Não é o que você está pensando, - gaguejava teatralmente, aumentando o clima de gozação.
— Mais tarde, a menina chamou o nosso herói falante, e gritou com o dedo em riste:
— Saiba que não sou sua palhaça!...
— Que é isso prima?!... Você sabe que eu estava brincando!...
— Mas você vai se dar muito mal com as suas brincadeiras!... Você já está no tempo de aprender a levar alguma coisa a sério na vida, senão vai se dar muito mal... Comece a levar alguma coisa a sério!... E é bom que comece pelas pessoas!...
Ela virou as costas, interrompendo bruscamente a discussão.
Foi esse o dia decisivo na vida de Zeca Loroso. Já tinha tido outros pequenos problemas por causa das suas palavras, mas dessa vez, ele próprio ficou magoado, por ter ofendido uma pessoas querida. As palavras da menina ficaram ressoando em sua cabeça, e pela primeira vez na vida, ele começou a pensar em voz baixa.
Também pela primeira vez, entrou em casa sem falar com ninguém. A mãe sentiria alívio, se não fosse a preocupação. Sabia que alguma coisa não estava bem com o filho. Ela já tinha tentado de tudo para fechar a "matraca", sem conseguir. E agora, depois de tantos anos, o via calado pela primeira vez.
— Que foi que aconteceu, filho?
Pela primeira vez na vida, ele respondeu uma pergunta com um aceno.
— Está sentindo alguma coisa, filho?
Novo e estranho silêncio como resposta.
Deitado em sua cama, ele sentia um enorme peso no estômago. E uma secura dolorida na garganta. Jamais se sentia assim em toda a sua vida de palavras e piadas. E sentiu o pensamento ficando nebuloso. E em pouco tempo estava como que distante como em um sonho estranho...
Levantou devagar, e foi até o banheiro. Olhou o espelho, e de sua boca, saiam muitas palavras. Viu o enorme rolo de esparadrapo, rasgou um pedaço, e tampou a boca. Resolveu que jamais falaria de novo. Olhou novamente, e viu por dentro do seu corpo, e no lugar do sangue, corriam palavras em suas veias. Mas elas se multiplicavam dentro do corpo, e em pouco tempo, não cabiam dentro dele. Mas com a boca fechada, foi inchando diante dos seus olhos. Mas estava resolvido que mesmo que morresse, jamais falaria uma palavra sequer.
Já tinha o dobro do tamanho, e ainda continuava inchando. Viu as palavras dentro do estômago, nos intestinos, nos pulmões. Alguma escapuliam pelos ouvidos ou faziam um som nasal, pelo nariz. Saíam também pelos olhos...
Estava do tamanho de uma baleia. Não cabia mais no quarto. Sentia dor por todas os lados... Uma dor enorme na barriga, como se milhares de libras de gases estivessem fazendo pressão... Não podia segurar mais... Tinha que soltar um pum... E foi o que fez. Ele saiu enorme... Uma bomba que tremeu até os alicerces da casa. E tudo o que tinha dentro dele, explodiu pelos ares... E as palavras ficaram soltas no ar como se fosse uma nuvem, e começou a cair em forma de chuva, molhando a cidade de fofoca. E a cidade que adorava fofoca, fedeu como privada.
Sentou-se aliviado. Viu quando outra nuvem se formou acima de sua cabeça, e foi tomando a forma do rosto da sua prima. Não parecia mais aborrecida. Chegou mais perto, e tirou o esparadrapo de sua boca... Ele teve medo do mau hálito, e levou a mão para tampar, mas antes que pudesse evitar, soltou um enorme arroto com gosto azedo de palavras estragadas.
A menina sem dizer nada, estendeu-lhe um copo, fazendo sinal para que bebesse. Quando o encostou à boca, viu que dentro dele, haviam muitas palavras bonitas e cheirosas. Foi então que viu que havia também um prato diante dos seus olhos, e que também lhe era oferecido, e a comida tinha um cheiro muito agradável.
— Coma, e beba, - ele ouviu.
Então começou a comer, e sentiu o gosto de palavras muito gostosas, como se devorasse um livro muito gostoso de se ler. E foi degustando cada palavra de textos muito saborosos, e poesias muito mais encantadoras...
A comida despertou sede, e ele virou o copo. O gosto era de letras de músicas inteligentes. E ele bebeu muito, porque tinha sede. E viu-se novamente no espelho, e percebeu que estava desinchando. E o líquido do copo ia limpando as palavras que corriam dentro do seu corpo, e foram se formando em outras palavras novas e bonitas, como jamais tinha visto.
Olhou novamente, e seu corpo pareceu com um copo transparente, onde uma água limpa era derramada, e via que ela substituía toda a sujeira que tinha antes, ficando alvo e limpo... E as palavras que agora corriam em suas veias, eram bonitas e limpas, e agradáveis de se ouvir. Abriu a boca, e saiu uma palavra linda... Receoso, falou de novo, e seus próprios ouvidos ouviram outra palavra que o mundo precisa ouvir...
Não estava mais inchado. Seu rosto brilhava como o rosto de um sábio. Seus gestos eram refinados como os de um ser celestial...
E nunca havia se sentido tão bem, como quando acordou. Não disse nada. Não que não tivesse o que dizer, mas porque sentiu que tinha domínio das palavras que corriam como um rio dentro de si.
Levantou-se, e olhou-se no espelho. Viu que era uma outra pessoa, e uma alegria diferente, invadiu seu coração. E se viu um sábio, e como tal, se lembrou do homem mais influente que já pisou na terra, que não fez outra coisa, a não ser, mostrar a habilidade que teve com as palavras...
Adelmario Sampaio