Eu ria dela quando percebia seu esforço em captar até os menores detalhes de minha existência. Divertia-me seguindo suas narinas a buscar a essência que impregnava o ar.
Que delícia de perfume! Este é novo, não é ?
Claro que sim. Um perfume que viera na bagagem. Nesses momentos, eu sentia verdadeiros ímpetos de me sentar no chão, ao lado dela, e ajeitando os fios nervosos de sua cabeleira morena, explicar-lhe: Boba, estive longe, bem longe e algo precisava me acompanhar no caminho de volta. Melhor perfume que gente, concorda ? No entanto, só pensava, olhos pregados nela, mas não me atrevia a dizer nada.
Ela abriu a próxima mala e deixou-se estar, pasmada, diante do casaco ocre.
Nunca vi nada assim tão bonito na vida! Parece sabe o quê ? Parece fim de tarde, bem romântico, em cidade pequena e serrana, daquelas encravadas no coração de algum lugar bem verde.
Mas o casaco é ocre ... Observei.
É, eu sei. Estou pensando no contraste que daria. A gente não encontra muita coisa ocre por aqui. Só podia ter vindo de lá mesmo.
Eu ria dela de novo. Tinha que vir de lá, porque lá na França fazia um frio dos diabos, bem diferente daqui, que segundo soube pelos noticiários, chegou a atingir trinta e oito graus em alguns dias.
Ela alisava o casaco ainda e enternecia o meu olhar. Não que ela prezasse tanto o objeto, acredito até que nem fosse pessoa das mais materialistas.
Me ensina um pouco do que você sabe ... você sabe tanto.
Sei nada! Sou a mais inútil das criaturas, mulher. Tenho medo de espelho quebrado, penso logo nos danos, nas dores da alma. No íntimo, bem que desejo ver a desgraça completa, os tabus no chão, mas ser forte o suficiente para estilhaçar essa superfície jamais ultrapassa o plano das minhas idéias.
Talvez ... Murmurei sentindo desconforto, enquanto mirava o relógio no meu pulso.
Voltou a usar ? Ainda outro dia, você disse que nunca mais deixaria qualquer relógio prender você novamente.
Veja como sou! Pois deixei, deixo sempre, é uma coisa de não reação. Não reajo, fico estática, esgarçada por dentro, mas ninguém vê, ninguém percebe. É minha eterna mania de querer passar despercebida, de ser apenas um ponto na multidão. Os sentimentos nunca contam, mas por causa deles, às vezes, não durmo à noite.
Lavei seu carro ontem. Sujo ele, viu? Tinha areia nos tapetes de borracha, papéis para todo lado, até latinha de refrigerante no chão. Descrição pura dela, assim meio ao acaso.
Me ofendi. O que você quer que eu diga? Obrigada por ser tão gentil comigo, por cuidar de mim com tanta delicadeza? Meu coração salta desordenado no peito, de pânico. Parece faltar assunto, meu Deus! Confesso: estou com medo. Sinto necessidade incontrolável de alcançar minhas contas terapia de muitas horas e montar uma pulseira, um colar, sibilo sozinha, gesticulo, meus pensamentos me atordoam, o que há? Droga, o que há? Parece que nem noto a presença dela, mas que fazer se é só isso, absurdamente, só isso o que eu faço o tempo todo?
Ah, deixa eu te avisar, a sua mudinha de manjericão não agüentou a mudança de vaso e morreu.
Planta feliz, livrou-se. Não tenho essa sensibilidade de gente do campo, não dou a mínima para qualquer cultivo. Depois nem gosto tanto assim de manjericão na minha comida, o cheirinho é bom lá longe, no Afeganistão ou além. De repente, em meio aos meus devaneios, ela esbarra sua mão miúda de leve no meu braço. Estremeço com a descarga elétrica, suficiente para subornar minha aparente indiferença. Do nada, invento um caos. Grito com ela, ofendo-a na ânsia de me proteger. Não sou feliz, não sou! Sou uma completa analfabeta de mim e tenho pavor dos veículos capazes de me desanuviar. Rejeito instrução. O ar torna-se rarefeito e entre as agressões verbais que continuo a despejar sobre a criatura, opto por abrir a janela da sala.
Ela aproveita para fugir da minha ira, enquanto mergulho meus olhos no horizonte acinzentado. O que está havendo?
Seria melhor se eu fosse embora? Mais tarde, durante o tilintar dos talheres, entre um bocado e outro, ela propõe.
O quê? Em momento algum isso me passou pela cabeça, embora tal procedimento talvez até fosse o melhor mesmo, só não sei ao certo para quem.
Não, é óbvio que eu não quero que ela vá embora. Consigo compreender essa realidade sem grandes esforços, consigo mais: explicitar isso em palavras. Digo a ela, que sorri. Em passos curtinhos, nipônicos, afasta-se e embrenha-se na cozinha.
O leve toque de sua mão miúda bastou isso para desencadear a embolada de sentimentos, que agora vertem dentro de mim. Cada dia, alcanço mais entendimento para decifrar a naturalidade daquele gesto. Já me permito admirá-la sem o antigo receio de perder o controle da situação quando nossos olhares se encontram. Na verdade, somos bem parecidas, minha discípula e eu.
Posso ler meu livro aqui perto de você? Os olhos dela são claros, observo, de um verde quase subjetivo. A imagem subjetiva da felicidade.
Alzira Chagas Carpigiani