Do Pó.
Não tinha nome ou sobrenome conhecido.
Do pó,
como seus companheiros de calçada na praça da Liberdade mal
vigiada. Magra demais, mirrada demais, lutara para sobreviver, o corpo
não acompanhara - ficaria perdido na meninice como se nunca pudesse
entender o que era ser adolescente.
O universo
eram os bancos e as flores empoeiradas de sol baixo. Não tinha luas
preferidas nem estrelas para apontar. Apenas o sobreviver seco, o barato
que enganava a fome.
Amigos, poucos – do coração nenhum. Andava na banguela para
desviar de trombadas e mesmo assim elas vinham. Pneumonia teve quatro.
Do hospital guardou o cheiro de urina e promiscuidade. E um doce de abóbora
que uma dona bacana descolara pra ela. Coisa de machucar de tão
gostoso, descendo macio na garganta. Quando a febre baixou, nem esperou
a assistente social, correu de volta para a Liberdade. A única que
conhecia. Empoeirada e gasta, mas sua.
Do pó. Roubava dos velhos que caiam em rasteiras, preferia senhoras,
sempre tinham dinheiro e outras coisas na bolsa. Uma vez achou um batom
cintilante. Pintou os lábios e escreveu na calçada. Olhou
seu reflexo na poça suja entre os carros.. era roliúdi, artista
da Globo. Vira novelas no abrigo, outros retalhos, na época das
internações. Á noite, as televisões ficavam
desligadas. A festa rolava aqui fora. No cheiro adocicado do fumo
que queimava o pulmão. No crack, no pó. Poeira de estrelas.
Cintilantes vazios entre seus pés de menina machucada. O que havia
além de mim?
Os homens
chegavam e pegavam as mais bonitas, depois distribuíam o pó,
pegavam o troco todo do trampo na calçada. Do pó era muito
magra, muito menina para ser de serventia na rua. Davam uns empurrões
nela e mandavam andar.
A morte
foi curta e sem drama. Bala perdida em tiroteio na avenida, quem mandou
estar na trajetória do destino? Caiu sem barulho como vivera. Silêncio
e poeira levantando. Bem devagar. Um vento maligno e doce percorria a rua.
Caixão
de indigente, acompanhamento de ninguém.
No fundo da
cova, ouviu o padre dizer – Descanse em paz...
A poeira entrava
pelos pulmões, ardia nas artérias, subia pelas entranhas...
Do pó gemeu pela primeira vez – Não quero! Mas o pó
perseguia seu corpo, sua alma, se infiltrava pela terra, inundava a calçada,
atravessava a praça. Poeira incansável, obstinada, carregou-se
para o alto, despertou planetas, atravessou galáxias...
E Deus espirrou.
Maria Helena Bandeira