O Recadastramento dos Mortos

         Quando se olhava no espelho, não via sua imagem. E por mais que se tentasse convencê-la de que a culpa se devia à falta de óculos, Zeferina replicava: "Os espelhos não refletem os mortos!".
         Cismara que estava morta, que não passava de um espectro esquálido, que por ruindade ou miopia de Deus fora barrada nos portões do Reino do Céu. Por teimosia, ainda folheava o livro de salmos que um dia uma patroa jogara no lixo. Fingia lê-lo e inventava preces que ninguém conhecia. Deus, lá de cima, fingia que ouvia...
        O falecimento (ou passagem, como costumava dizer) acontecera nos primeiros meses de vida, quando uma diarréia celeste secou as águas do seu corpo e do poço que abastecia a casa. Vagou pela caatinga aconchegada nos ossos da mãe. Por falta de viço e "sustança", Deus não lhe deu asas. Não virou anjo e com o tempo se conformou com o estado de assombração. Uma assombração assombrada pela falta de assombro que os vivos demonstravam quando lhe viam.
        Como não tivera tempo de ir à escola, teve que desvendar sozinha os mistérios do não-ser. A duras penas descobriu que certas assombrações, mesmo dotadas de invisibilidade, precisam dar duro e lascar as mãos no trabalho. Descobriu também que, embora dotadas de cordas vocais, as assombrações devem se recolher ao silêncio.
        Assim, lascada pelo trabalho, muda e invisível, Zefa peregrinou entre os vivos. Contentou-se com os restos dos pratos, as roupas velhas, a sandália havaiana, uma televisão em preto e branco e uns parcos centavos no fim do mês. Não deu para seguir as tábuas sagradas e gastava tudo no armazém e na farmácia. Contraiu dívidas e rogou a Deus que repetisse o milagre da multiplicação dos pães, mas desta vez com carne, feijão, arroz, frango, leite, galinha, torresmo, azeite, banana, iogurte (coisa que tinha provado uma única vez, quando no mercado fizeram promoção) e verduras. Não foi ouvida e assimilou o silêncio divino como castigo por ter recaído no pecado da gula.
        Temente a Deus e aos vivos, Zefa se conformou com o seu fado (ou fardo?) e esqueceu de uma vez por todas o tal milagre da multiplicação. Descobriu que às assombrações cabem somente divisões e subtrações. Mas como não fora à escola nem tomara gosto pelas matemáticas, não se apoquentou. Seguiu lascada e subtraída pelas agruras da morte.
        Há pouco tempo atrás foi surpreendida pelo som da televisâo do vizinho (a dela estava quebrada há uns bons dez anos): "Aposentados com mais de noventa anos terâo que se apresentar para o recadastramento.".
        Naquela noite foi dormir mais cedo. Reservou o vestido de domingo e deu um lustre na sandália havaiana. Acordou ainda de noite; vestiu-se e tomou o trem. A barriga vazia assombrava os passageiros com sons guturais. Não ligou, acostumara-se com essas muitas vezes que podia romper o silêncio e assombrar os vivos.
        Chegou à fila sem o sol se levantar. Reconheceu outros mortos. Lá estavam Severino, João, Maria, Dorotéia, Pedro, e muitas assombrações que ainda não conhecia. Tomou o seu lugar na fila e penou doze horas sob a quentura do sol. Não reclamou. Agarrou-se ao livro de salmos e inventou mais alguns. Fingiu que Deus a escutava e que partira Dele a idéia do tal  recadastramento.
        Pela falta de estudos ou talvez pela televisão quebrada, Zefa mingou feliz na fila. Foi a única a achar que o recadastramento era um documento para, enfim, adentrar no Reino do Céu!

Marcia Frazão


 
 

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