Capítulo I:
Surpreendo-me ao ver meu corpo. Estou grávida! Como é possível isto se nem mais menstruo?
– Jesus, devo estar grávida de uns 7 meses. Só pode ser um delírio.
Olho para os lados e não reconheço o local. Estou em uma rua escura, estreita, uma espécie de beco; em frente há uma rodoviária. Já é tarde da noite, nenhum tráfego, poucas pessoas andando. Sinto o pânico tomar-me aos poucos. Olho de novo para baixo e vejo a barriga imensa. Não há dúvida. É gravidez mesmo. Estarei sonhando? Ou será que morri e renasci para uma nova vida? Mas se nem conheço minha nova família. E já nasci adulta? Grávida?
Enterro as unhas na palma de uma das mãos em um esforço para me tranqüilizar. Instintivamente confiro se é a minha mão mesmo, com unhas alongadas, pintadas de vermelho. Sim e não. Estou mais jovem, minha mão remoçada, as unhas curtas e sem esmalte. Preciso urgente de um espelho, quero ver meu rosto. Constato, aterrada, que não carrego bolsa.
– Meu Deus, nem tenho documentos.
Atravesso a rua, rápida e noto que ando de um jeito singular, com as pernas afastadas.
– É o peso da barriga, penso.
Inconscientemente acaricio meu ventre. Que loucura, parece que já amo o bebê que carrego. Tropeço, perturbada por meus pensamentos e sou acudida por um senhor de idade. Ele vê a confusão estampada no meu rosto:
– Minha filha, não é muito tarde pra você estar aqui sozinha?
Gaguejo alguma coisa incompreensível e corro para o interior da estação. Depois de muita procura adentro o banheiro, direto para o lavatório. No espelho, uma moça de no máximo 25 anos olha-me assustada, com um abdome compatível com sete meses de gestação. Seu cabelo é longo, castanho, naturalmente dividido ao meio, e os olhos da mesma cor. Sou eu rejuvenescida! E grávida. Reparo que minha roupa é simples. Uso um casaco leve por cima do vestido curto e folgado. Maquinalmente, tateio os bolsos do casaco e só encontro um lenço. O inusitado da situação leva-me a um estado vertiginoso. Sinto que vou cair. Seguro, com força, a bancada da pia tentando me controlar.
– Calma, garota, calma...
A forte tontura vai esmaecendo. Aos poucos levanto a cabeça e dou uma olhada geral. Vejo uma cadeira encostada na janela, do outro lado do aposento, e me pergunto se conseguirei alcançá-la. Neste instante entra a encarregada da faxina, que logo percebe minha situação.
– Fica quietinha aí, minha filha, que vou pegar a cadeira pra você. Quer um pouco de água? pergunta, solícita, depois que me ajuda a sentar. Balanço a cabeça em afirmativa e ela sai apressada. Volta no mesmo passo e me dá água em um copo de papel. Enquanto sorvo o líquido observo que ela deve ter uns sessenta anos, ou seja, cinco a mais que eu. Como lhe explicar esta metamorfose? Antes que eu possa dizer qualquer coisa já me interroga:
– Sozinha aqui numa hora dessas. Cadê seu marido, seu companheiro? Perdeu a bolsa? Tá sem dinheiro?
Atordoada por não conseguir responder a essas simples perguntas começo a chorar.
– Coitadinha, aposto que se meteu numa enrascada, não foi? Onde você mora?
– No Rio, na Tijuca. Não sei onde estou, nem o que faço aqui.
Ela me olha de soslaio. Enxugo as lágrimas com o lenço, meu único bem, tentando conciliar a avalanche de pensamentos:
– Só posso ter morrido e estou no umbral. Mas por que nenhum familiar veio me receber, ajudar-me nessa fase de transição?
Paro de chorar e ouço a mulher perguntando meu nome.
– Elizabeth, respondo. Dessa vez perco os sentidos.
Acordo em uma salinha, a mulher sempre a meu lado, prestativa. Um senhor idoso apresenta-se como médico e, após medir minha pressão arterial, indaga com delicadeza:
– Então, está melhor menina?
Digo que sim, em um murmúrio. Ele me dá um café quente, olhando-me com simpatia.
Estou apavorada. Eu não sei quem é Elizabeth. O meu nome é Dina.
Capítulo
II:
Sou médica. Chefiei por muitos anos o serviço de Pediatria de um importante hospital no Rio de Janeiro e aposentei-me há alguns meses. Saí de viagem com meu marido chegando a uma cidadezinha no sul do País. Não temos filhos. Esta sou eu, real. Não sei a explicação, mas há como que uma ponte separando minha vida pregressa desta que vivencio no momento.
Vejo-me, ainda, como médica, aos 55 anos, examinando um recém-nascido em um hospital que desconheço. Sei que é noite e o mais estranho é que estou só. Subitamente, uma visão terrível: um bebê carbonizado em uma incubadora. Horrorizada, grito pedindo socorro e ao mesmo tempo esbravejo contra tamanha incompetência.
Muda o cenário. Sai a Dra. Dina e entra Elizabeth, a grávida. Simpatizo com ela, não fosse a aura de mistério que a envolve.
Frente à minha situação, fico hospedada em um alojamento dirigido por irmãs de caridade. Elas me tratam bem, sem nada perguntar, pois julgam que perdi a memória. Fico sabendo que estou em Poços de Caldas, uma cidade no interior de Minas Gerais, desconhecida para mim. No dia seguinte, a primeira coisa que faço ao acordar é verificar meu corpo. Ela está lá, a barriga, enorme, com o umbigo protuso.
– Preciso de um calendário, falo baixinho, tentando controlar a pulsação rápida.
Após muita procura deparo-me com um, afixado na parede da copa, bem ao lado do coração de Jesus. Estamos em 1973! O desespero me ronda, tento não enlouquecer. É vital que acorde deste pesadelo. Devo afastar-me de todos; quem sabe sozinha minha mente vem à tona e permite que eu acorde de uma vez?
Para me acalmar, suplico às freiras que me deixem sair, por pouco
tempo que seja. Uso a desculpa que a visão da cidade possa clarear-me
as idéias, permitindo-me voltar ao normal. Insisto em permanecer
só. A contragosto concordam comigo, obrigando-me a levar um mapa
para não me perder. Não precisei usá-lo. É
impressionante a sensação do “déjà vu”.
Sou atraída pelas ruas largas e pelas grandes ladeiras, que subo
serena, apesar do meu estado. Tenho certeza que conheço a cidade,
cercada por hotéis, com uma bela praça florida e um coreto.
Nos dias que se seguem, passo horas sentada nos bancos de pedra, enredada
em meus pensamentos, fingindo ler um livro que as irmãs me emprestaram.
Na verdade, estou perplexa com o ocorrido. Começo a duvidar que
realmente se trate de um sonho. Que nome devo dar a isto? O mais assombros
o é que pareço acomodar-me à situação.
E a minha vida antiga? Meu marido? Essa criança, quem será
seu pai?
Capítulo
III:
Passaram-se dois meses e continuo perdida no tempo. As freiras, por piedade, fizeram um enxovalzinho para a criança que já, então, aprendi a amar. Com freqüência sinto-lhe os movimentos e até passei a conversar com ela. Falo com carinho, teço planos; de repente lembro-me que a gravidez não existe. Eu também não existo.
Noto minha ansiedade crescente nos últimos dias. Vivo um dilema: se o bebê nascer nunca mais verei meu marido e minha verdadeira vida ter-se-á acabado. Tenho certeza disso.
O obstetra me alerta que se aproxima o momento do parto. Nem precisava. Eu, como médica, já o senti. O que mais me espanta é que à medida que atravesso as semanas parece que me desligo cada vez mais do passado. Um sonho remoto, é o que se tornou para mim. Apeguei-me demais ao neném, um garoto segundo a ultra-sonografia. Acordo sempre apreensiva, com uma sensação de dor no peito que relaciono ao medo de perdê-lo. Quero ter meu bebê. Ele se chamará Edson, como meu marido. Fiz as contas e lembro que me casei aos 25 anos. Embora nunca tenha engravidado, parece que estou tendo uma segunda chance. Sim, não há dúvida. Essa criança será o filho que nunca tivemos. Devo cumprir meu destino.
O velho médico toma a pressão da jovem em trabalho de parto.
– Como está ela, Doutor? Pergunta a religiosa que o assessora.
– Não estou gostando. A pressão está muito baixa.
A moça geme baixinho, enfraquecida.
– Vamos, Elizabeth. Você tem que fazer força.
Ela fita o médico, amedrontada.
– O que foi, minha filha?
– Doutor, não deixe meu filho morrer!
– Ele não vai morrer, Elizabeth.
– O senhor promete?
O médico olhou para a freira, que apertava o ventre da jovem, como que pedindo ajuda:
– Prometo. Mas você tem que fazer força. Ele precisa sair, Elizabeth.
– Meu nome é Dina, sussurra a parturiente.
– Ela está delirando, Doutor.
– Eu sei, irmã. Força, Elizabeth! Força!
Capítulo
IV:
Na Unidade de Terapia Intensiva de um famoso hospital no sul do País, um homem observa, preocupado, os vários monitores ligados à enferma. Em coma, há dois meses, sofreu recentemente uma parada cárdio-respiratória e traz no peito as cicatrizes deixadas pelo desfibrilador. Por pouco não morreu no incêndio que destruiu a ala de Pediatria do pequeno hospital onde se encontrava. De passagem na cidade, foi reconhecida por um antigo interno que lhe pediu para examinar seu filho, acometido por uma grave afecção. O incêndio pegou a todos de surpresa e ela, para escapar, se atirou do quarto pavimento. Não morreu. Teve o crânio fraturado com extensa hemorragia cerebral, responsável pelo coma aparentemente irreversível.
Seu marido, incansável, não abandonou a esposa um minuto sequer. Naquelas incontáveis horas rememorava os 30 anos de vida em comum. Ambos eram médicos; ela fora sua aluna e se destacara como famosa pediatra. Amavam-se muito, se bem que discutissem com freqüência. Tinham, ambos, o gênio forte e eram muito diferentes: ele, a razão personificada e ela, sonhadora, pura emoção.
Os monitores interromperam o fluxo dos seus pensamentos. Apitavam sem cessar evidenciando variação vertiginosa dos sinais vitais.
– Meu Deus, ela vai parar de novo, pensou desesperado. Gritou pedindo ajuda enquanto socava, impiedoso, o tórax da esposa.
– Não vá, Dina! Não vá! Berrava, como se a mulher pudesse ouvi-lo e decidir a respeito.
– Força, Elizabeth! Não é hora de fraquejar, disse o médico, enquanto ajustava o soro no braço da parturiente.
– Vamos, menina! Força! Repetiu a irmã de caridade. O bebê está coroando!
Elizabeth, usando de toda força possível pensou:
– Perdoe-me Edson. Perdoe-me, meu amor.
Ao ouvir o choro do recém-nascido ela chorou também. Sabia o que estivera em jogo. Fizera sua escolha.
Na Unidade de Terapia Intensiva, a enfermeira dirigiu-se ao médico que lutava pela vida da sua mulher:
– Dr. Edson, não adianta mais.
O homem alto, de cabelos grisalhos, balbuciou algo ininteligível.
– Ela se foi, doutor. Nós a perdemos.
EPÍLOGO:
Vivo em Poços de Caldas há dois anos. Nesse meio tempo
pensei em retornar ao Rio pois queria, com meu filho, voltar às
minhas origens. Algo me impediu. Sinto-me como que protegida nesta cidade.
Temo que ao sair atravesse a barreira do tempo e perca meu menino, a quem
tanto amo. Não o suportaria. Em meu íntimo sei que fui obrigada
a optar entre o meu filho e seu pai. Escolhi o primeiro. A maternidade
tem dessas coisas. Penso muito em Edson. Acalento a esperança de
encontrá-lo, breve, remoçado. Por quê não? Aconteceu
comigo.
Danna D.