Onde está Eva e o seu ventre?
Como chamaremos as mulheres surgidas nesse terceiro milênio? Evas?! O ponto de partida desta reflexão é, a mais das vezes, o sentimento de uma antropologia feminina frente às convenções de valores dessa sociedade.
A imprensa e o senso comum maquiam continuamente uma realidade para nós, pelo simples fato de pensarem que essa é a nossa única realidade. E a hermenêutica da corporeidade tenta recuperar essa simbologia do que é conceituado para nós. Mas tudo continua ao sabor de uma feminilidade emblemática e mascarada. Os abusos ao feminino ainda são vários nessa sociedade. E esse psiquismo da mídia continua deixando a mulher na sua primeira infância. “Será que estou gorda?”, “será que estou magra?”, “será que estou consciente?”
Em virtude de nossas memórias, gerações, tradições, insistências, repetições, conseqüências, disfarces, mitos, dilemas, duelos e amor entram em relação íntima com estas partes de nós. No decorrer da era de aquário as coisas repetidas conversam, exigem possibilidades, uma nova percepção para essa mulher, que talvez esteve sublimada nos limites reais da sua condição. Enquanto as contradições sarcásticas do espetáculo kitsch continuam prevalecendo. E por antecipação, a mulher se adere, assim, conforme a aparência conflitada do seu “eu”, do seu personagem perturbador na sociedade. Assim, elas escutam o mito do “pagar” intratável dos tempos remotos do velho Éden.
“Viu, Eva? Seja bem vinda! Mas traga o seu ventre!” Porque frenesis de impressões e júbilo te guardam das mais antigas infecções do passado. E mesmo que o artifício histórico dessa desordem de informações tenha denunciado um espetáculo degradado das plaquetas que controlaram tantos sangramentos, mesmo assim, o sopro se enche e se renova para uma esperança endereçada a cada uma das células do nosso feminino.
Se por acaso um sutiã elevar nossos seios para um lugar de gravidade melhor ou se uma calcinha de renda pode crispar demais o nosso sexo, do mesmo modo a medula do conhecimento do ventre pode, com grande lucidez, nos ofertar a somática da inteireza humana. E em alguns casos nos devolve o mergulho na matéria que somos.
Então, ainda que anúncios, cartazes, rótulos, lux e emblemas tentem fabricar nossas cabeças, ainda assim eles nunca evocarão a arte divinatória do nosso ventre. Falo do ventre para lembrar que necessitamos fazer a leitura desse local sagrado. Há muitas estórias a respeito do ventre. Li que para os antigos alquimistas, o ventre é a Tanor, o recipiente da alquimia, o lugar da transformação. Para os japoneses, é o lugar da maturidade, da confiança. Se uma mulher é centrada, diz-se que ela tem a arte de fazer todas as coisas com o ventre, ou seja, com sua confiança.
Mas esses são os arquétipos das outras culturais que bem poderíamos prestar atenção. Enquanto o ocidente continua abalando o sistema nervoso central das mulheres, o oriente faz da nossa escuta a essência da natureza.
Então, qual é o nível do ventre em nosso feminino hoje? Quais as pressões que ele sofre? E em qual ventre podemos acreditar?
Portanto, trata-se mesmo de escutar essa aliança ainda não explorada por tantos de nós para podermos compreender as nossas fronteiras e conflitos. A experiência nos diz que é bom visitar o inconsciente desse ventre. Afirmar que ele tem uma mensagem, um ambiente, uma textura, uma recordação, uma memória de coesão.
E não esqueçam, estamos sempre convidados a nos fechar nos modelos estabelecidos pelos outros ventres. Não é fácil. É por isso, que de todos esse modelos, pergunto: exercitaremos até quando esse modelo rosa-shokin de que somos um bicho esquisito e por isso não provoque, como bem disse a letra de Rita Lee? Conseguiremos escapar do nosso sexto sentido que sangra todo mês?
Não sei. Todavia, hoje resolvi acreditar no dia 8 de março. Mesmo porque todas as evidências afloravam que o fizesse, mas apenas para mostrar que o sentido da necessidade de expressão do feminino está num longo caminho a percorrer. Um caminho de lá de dentro, sem pressa, sem querer tudo, mas infinitamente consciente de cada passo, um passo de cada vez, um passo mais feliz. Em suma, um passo que mergulha fundo e é por isso um passo de orientação para esse ventre de tantas mulheres reavivadas em sua inteireza e que se misturam com o sentido da própria existência. A aprendizagem é intensa quando a descoberta do nosso ser é intensa.
Cada um de nós, homens e mulheres, têm de modo bem particular e pessoal, esse passo de abertura e esse passo de intensidade na vida. A mulher não pode deixar apagar esta chama feita gota a gota. O homem também não. Apesar dos ditames históricos, dos períodos de mudanças hormonais e seus efeitos e dos outros modelos que criaram por nós, é sempre a presença do âmbito humano que identifica nossa pulsão.
Não há lei de causa e efeito, mas há uma lei do conhecimento enraizado nessa composição de ventre. Um ventre que tem sincronicidade com o nosso corpo físico e com o nosso corpo de memórias. Um ventre tal como foi sonhado pela história. Um ventre tal como foi desejado pela antropologia. Um ventre é um local importante e, mais profundamente ainda, um ventre é um templo que nos é pedido manifestar nesse dia.
Sim, se quisermos viver nesse ventre, sequer tocá-lo, entre a matéria e o espírito dele, precisamos acolher essas palavras iniciais e começar os nossos cuidados essenciais: Ave Eva!
E saber que esta saudação é muito bela para a consciência da prática do feminino em cada um de nós.
Cristina Guedes