O sol estava a pino. Pedro Maritaca carpia a roça de feijão. O suor insistente obrigou-o a ir até a bica molhar a cara um pouco. Estava lá, refrescando-se antes de continuar a lida, quando umas palmas vieram da porteira:
- Ó de casa! Alguém em casa? – uma voz sem sotaque chamou.
- Vá se chegando. Pedro Maritaca, um servo ao seu dispor! - respondeu prolongando erres.
O visitante, engenheiro da cidade que, vítima da crise, deu-se por bem embrenhar-se nas perspectivas do serviço público, abriu a porteira e se aproximou.
- Muito prazer, seu Pedro. Meu nome é Tales. Eu queria ter uma conversinha com o senhor.
- Vamos entrando, seu... seu... cumé mesmo?
- Tales! Engenheiro Tales!
- Ah! Assim como se diz ‘tales quais”, né mesmo?
- Bem, pode ser.
Os dois entraram na paioça de Pedro, que logo foi servindo um cafezinho, mantido quente na beira do fogão a lenha.
- Muito obrigado, seu Pedro.
- Se assente, seu Talesquais, a casa é sua. Tá meio em desorde. A muié tá pra casa da mãe com os fio.
- Não se importune por isso, seu Pedro.
O café fraco, ao jeito da roça, foi sendo bebido em canecas esmaltadas, de verde batido. Tales abriu uma pasta e foi retirando resmas de papelada. Pedro, enquanto bebia o café, só olhava de soslaio, desconfiado que só porco do mato. Afinal, toda vez que algum “armofadinha” da cidade aparecia lá no terreiro, coisa boa não era. Mas aguardou paciente, já alisando uma palha e preparando o canivete pro pito.
- Mas me diga, seu Talesquais, veio aqui pra mó de quê?
- Seu Pedro, deixe-me mostrar minhas credenciais e...
- Ara, deixe disso! Aqui a gente não percisa mostrá nada não. Num fica bem um home mostrá as roupa de baixo.
Pedro já ia se levantando, ajeitando o cinto nas calças, bufando o pito, e pegando a velha pica-pau. O asséptico cidadão, ciente de que falara algum absurdo no dialeto local, foi logo se explicando.
- Não é nada disso, seu Pedro. Eu trabalho para o governo e estamos fazendo um levantamento da população deste arraial. O censo, o senhor conhece?
- E não? Meu pai me ensinô a ter senso na base da cintada. Falava: - Meu fio, bão senso na vida!
- Que ótimo, seu Pedro. Seu pai é uma pessoa sábia.
- É não, era. Deus o tenha!
- Meus sentimentos, eu não sabia.
- Mas vamu deixá de cunversa fiada e o senhor me diga logo o que tá querendo, que eu inda perciso trabaiá.
- Certo. Seu Pedro, preciso lhe fazer umas perguntinhas rápidas. É pra sabermos quantas pessoas moram na região, o que fazem, etc.
- Ara, isso é fácir! Aqui tem eu, o Zeca Bigode, a dona Cotinha, a ...
- Não, não, seu Pedro! Só preciso que o senhor me responda. Depois eu vou visitar seus amigos também.
- Pois pregunte!
Tales se ajeitou como pode, entre formulários e canetas, e o interrogatório teve início.
- Qual sua idade, seu Pedro?
- Uns quarenta e pouco.
- Pouco quanto?
- Ara, e esses detalhe interessa? Eu num tô aqui na sua frente? E nem sei dereito. É uns pouco. Afinar, a idade da gente tá nos calo da mão, nas roça que a gente faz, nos fio que bota no mundo.
- Interessante. O senhor lê filosofia?
- Óia, seu Talesquais, eu num entendo esse palavreado todo. O senhor seja mais craro.
- Desculpe, foi um lapso momentâneo.
- O senhor quer um apontador? Tem os das criança.
- Não é necessário. Vamos continuar: - qual é a sua profissão?
- Nóis aqui planta, cria, e despois colhe e come. E o senhor, faz o quê?
- Bem, eu? Eu sou engenheiro. Quer dizer, eu era. Isto é, eu sou mas não exerço.
- Mas que compricação de profissão é essa?
- Desculpe, seu Pedro. Foi outro lapso.
- O senhor é cheio de lápis! Deve de ser estudado.
- Nem tanto, seu Pedro. Vamos continuar.
Questionário respondido, foram os dois dar uma volta na pequena propriedade. Roças de feijão, milho, mandioca. Pedro arrancava uma e Tales se espantava. Pedro separou uns cinco quilos e embrulhou em jornal.
- Seu Pedro, hoje eu lavei a alma!
- Ara, pois venha quando quisé!
- E lá embaixo, o que o senhor tem lá?
- Ah, lá eu tenho uns cateto guardado no cercado.
- Catetos? Onde?
- Lá embaixo, seu Talesquais.
- Onde?
- Lá, óia! Tá vendo uns cercadinho tudo quadrado? É os quadrado dos cateto!
- Quadrado dos catetos?
- É. A gente cria. Uns nóis vende, outros a gente mata em ocasião especiar. Natar, essas coisa.
- O senhor conhece Pitágoras?
- Deixa ver... de que bandas é a família dele?
- E hipotenusa? Conhece?
- Ah, essa eu já ouvi falá! Num era uma dona que morava lá no barranco fundo, que ficô viúva e despois deu no que falá?
- Desculpe, seu Pedro. Eu nem sei o que estou dizendo. Foi...
- Já sei. Foi outro lápis, né? Eitcha home estudado!
A tarde caiu, o sol se pôs. Tales voltou ao seu destino. Quando chegou, derrubou montanhas de livros da estante e chorou.
Pedro passou o cadeado na porteira, recolheu as galinhas e passou o ferrolho na porta. Tomou um gole de boa caninha e deitou a sonhar.
Alberto Carmo