É BOM DEMAIS!

Ele surgiu das camadas humildes da população recifense, não tem influência de nenhum outro ritmo e continua em evolução mesmo tendo chegado aos cem anos. Seu nome é frevo!

Ele é agitado, fervente, um “apertão nas reuniões de grande massa popular no seu vaivém em direções opostas”. Sem falar em sua capacidade de botar todo mundo para pular e de seu valor comercial - vide sua presença tanto visual quanto sonora em produções publicitárias diversas. Isso mesmo tendo chegado aos cem anos - bom, ao menos no que diz sua certidão de nascimento (ou seria de batismo!?). Hoje celebra-do como uma manifestação cultural (que inclui dança, música e poesia) genuinamente pernambucana, o frevo nasceu ofi-cialmente em 9 de fevereiro de 1907.

Naquele sábado de zé-pereira, o Jornal Pequeno (principal vespertino em circulação na cidade) tornava possível o primeiro registro em meio impresso do vocábulo “Frevo” ao publicar nota a respeito do desfile do clube carnavales-co Empalhadores do Feitosa. Dizia o texto: “O seu repertório é o seguinte: Marchas - Priminha, Empalhadores, Delícias, Amorosa, O Frevo, O Sol, Dois Pensamentos e Luiz do Monte, José de Lyra e Honorários; Ária - José da Luz; Tango - Pimentão”.

Tanto a palavra quanto as manifestações, no entanto, já existiam desde os últimos anos do século 19. Estas, mais precisamente, desde 1870, com o surgimento dos primeiros clubes carnavalescos. Quanto ao nome, ele seria derivado do verbo ferver, que teria sido involuntariamente alterado pelo falar das pessoas mais humildes. Outra teoria, defendida pelo músico e produtor musical Zé da Flauta (confira o artigo Liverpool na História do Frevo, publicado na extinta Mangue Nius - www.terra.com.br/manguenius/colunas/ctudo-ze-liverpool.htm), atribui aos trabalhadores de engenho da Zona da Mata pernambucana a origem de tal batismo. Eles usariam como analogia ao ritmo e sua dança a “frevura” do mel extraído da cana-de-açúcar nas caldeiras.

SEM VOCÊ NÃO HÁ CARNAVAL - Este ano, em seu centenário, o frevo recebe homenagens em diversas frentes. Somente a Prefeitura do Recife reservou cerca de R$ 2,5 milhões para as ações que incluem gravação de CDs, publicação de livros e criação de espaço para exposição permanente sobre o ritmo. Um dos carros-chefes do projeto é um CD duplo tocado em parceria com a gravadora Biscoito Fino, que inclui a participação de artistas de renome da música popular brasileira, como Maria Bethânia, Silvério Pessoa e Vanessa da Mata.

Outra iniciativa da prefeitura transformará o frevo em patrimônio cultural imaterial do Brasil, objetivo que deve ser alcançado até o dia do centenário. O trabalho de preparação do relatório contendo a solicitação, e entregue ao Iphan, foi realizado pelo Centro de Estudos e Pesquisa em Cultura Popular - também conhecido como Casa do Carnaval. Criado em 1984, o espaço promove oficinas, cursos e exposições. Seu acervo é composto por livros, revistas, fotografias, vídeos e CDs, entre outras peças de importância para pesquisadores, artistas e estudantes.

O documento contém desde pesquisa sobre as origens do ritmo a propostas sobre como ele pode ser salvaguar-dado e tenha um alcance maior. “Em termos de música, o frevo é um dos tripés da música brasileira. É um gênero brasileiro por excelência que poderia estar tocando nas rádios”, afirma Carmem Lélis, responsável pela administração da Casa do Carnaval. “Mas não está. A mídia ainda não trata o frevo como um produto que possa ser aproveitado nacionalmente. Talvez não haja interesse em termos de mercado imediato de consumo”, completa ela, enquanto, no fundo da sala, um boneco em tamanho natural de Capiba - de mãos para o alto, sem os óculos e de cabeça baixa parece concordar com suas palavras.

Quem também participa das ações do centenário é a agência pernambucana EscalaNovva. É dela a assinatura do projeto Recife, a capital do frevo, que espera trazer novas reflexões sobre a cultura local a partir do desenvolvimento de ações promocionais como a instalação de 17 esculturas de passistas feitas em fibra e dispostas em praças e pontos turísti-cos da cidade. Com o trabalho, a agência pretende integrar o potencial cultural e artístico da cidade. O projeto é inspirado na exposição Cow Parade, apresentada com sucesso em 24 países. Brasil incluso.

E quem não poderia estar de fora dessa folia é o Clube de Máscaras O Galo da Madrugada, que vem defendendo o ritmo em seus desfiles no sábado de zé-pereira desde 1978. Este ano, o conhecido hino “Ei, pessoal. Vem, moçada / Carnaval começa com Galo da Madrugada” embala o tema O centenário do frevo. Da rua ou de casa, as pessoas verão carros e fantasias destacando as principais características da dança, bem como sua evolução. A começar pelo carro abre-alas, que exibirá o mascote do clube vestido a caráter para a festa. Pontapé inicial do Carnaval pernambucano, o Galo da Madrugada foi criado com a proposta de trazer de volta à cidade os antigos e animados carnavais de rua. A agremiação figura no Guiness Book como o maior bloco carnavalesco do mundo.

COM ORGULHO E COM SAUDADE - Para Edison Martins, Mart Pet Comunicação (PE), propaganda é como frevo. E frevo é como propaganda. “É um negócio que começa na cabeça e vai tomando conta do corpo. É preciso ter ginga para fazer, além de paixão e equilíbrio”, afirma. Por meio da agência, o ritmo dá as caras no relatório anual da Chesf referente ao ano de 2005, no qual é apresentada a performance da companhia tanto em termos numéricos quanto empresariais. “Sempre colocamos um valor agregado nele, traduzido através de um tema anual para que ele ganhe atratividade conceitual e de design”, explica Edison.

A embalagem do relatório foi confeccionada no formato de estandarte carnavalesco, em veludo com bordados. Já as cores que dão vida ao material são as mesmas vistas na sombrinha de frevo estampada em sua capa. O relatório tem texto do historiador Leonardo Dantas sobre a história e grandes marcos do frevo, miniencarte com ilustrações dos principais passos e CD do multiartista pernambucano Antônio Nóbrega. O relatório é enviado para pessoas expressivas do Brasil e exterior: “Não é algo 'umbilical', mas uma maneira de divulgar o frevo além de nossas fronteiras”, ressalta o profis-sional. Para ele, é preciso que a presença do frevo em uma campanha seja resposta para uma pergunta de comunicação, e não somente mero adereço para dar “uma cara da terra” ao trabalho. “O frevo tem que ser encarado com uma expressão de música e de arte. Logo, como referência cultural e como parte de uma estética maior, que pode fazer parte de inúmeras peças publicitárias de inúmeros produtos”, afirma. E prossegue: “A propaganda não cria a cultura, mas a amplifica. E amplificando, ajuda a preservar, valorizar e fortalecer”.

Fabiana Souza, diretora de Mídia da Carratu Publicidade (RN), acredita na vantagem do uso de ritmos nordestinos em campanhas publicitárias - tanto por eles serem predominantes no gosto popular brasileiro, quanto pelo fato de tornarem a publicidade mais atrativa e curiosa. “Temos um país com muitos países dentro, e o brasileiro é muito aberto a novas culturas”, diz. Quanto ao frevo em particular, ela o vê como representativo da cara, jeito e expressão de alegria do Recife e detentor da característica de aproximar e favorecer a penetração da comunicação a ser transmitida. “Quando bem produzido, o ritmo gera um conceito viral coletivo, cai no gosto popular e claramente se destaca das demais peças veiculadas no mesmo canal”, afirma.

“As pessoas têm uma idéia errada do frevo. Algumas têm a sensação de que ele só pode ser ouvido no carnaval”, avalia a diretora de Atendimento e Mídia da Tsimitakis Comunicação (PE), Magda Sofia, para quem o ritmo precisa ser libertado do período momesco e tocado o ano inteiro. Para ela, o frevo é um ritmo de fácil adaptação, o que possibilita infinitas possibilidades aos criativos, além de uma identificação grande com os consumidores. Segundo a profissional, a importância do frevo na comunicação entre consumidor e anunciante reside no fato de as manifestações culturais aqui na região terem papel ativo e próximo às pessoas. “A cultura popular, além de grande referência, é o espelho onde os consumi-dores se enxergam”, diz. Na opinião dela, o uso dos ritmos regionais na comunicação com os clientes tem como vantagens da aproximação da marca ao dia-a-dia do público à ampliação das possibilidades estratégicas e criativas.

Um reconhecido case de sucesso com o frevo foi a campanha criada pela Itaity Publicidade (PE) para as Casas José Araújo que tinha como personagem principal uma moçoila de nome Davanira. Contextualizando: jovem morena se debruça na varanda de seu quarto enquanto, ao nível da rua, grupo de rapazes reverencia sua beleza aos versos de “Davanira, é ela / Tire sua roupa da janela / Toda vez que vejo ela sem você / Só me alembro de você sem ela!”. O jingle se tornou a música mais executada no Carnaval daquele ano, que viu uma profusão de davaniras invadir a folia. Na época, o VT foi finalista do prêmio Profissionais do Ano. Hoje, a campanha tem lugar cativo na memória afetiva da publicidade regional.

MADEIRA DE LEI QUE CUPIM NÃO RÓI - Diferentemente de outras formas de expressão artística, o frevo não se cristalizou no tempo, a exemplo das marchinhas cariocas. Graças, sem dúvida, ao interesse de novos artistas em contribuir com a preservação e divulgação do ritmo. Um exemplo é a SpokFrevo Orquestra. O grupo é formado por 18 músicos - que já se apresentaram em países como Portugal, Itália e França - e possui um CD lançado, o Passo de Anjo, considerado um divisor de águas na história do frevo pela crítica especializada. Sua proposta: dar um tratamento diferenciado ao frevo, cuidando melhor de arranjo e execução e valorizando a liberdade de expressão dos músicos. “É maravilhoso tocar para as pessoas se divertirem no Carnaval, mas a gente também sonhava em pegar o frevo, colocá-lo no palco e tocá-lo com mais cuidado, para que as pessoas prestassem mais atenção nele como música”, afirma Spok, saxofonista, arranjador e diretor musical do grupo.

O sonho do músico, que brinca dizendo que seu apelido seria Inaldo Cavalcante de Albuquerque, é de ver o frevo executado ao longo de todo o ano, e não somente na época carnavalesca. “Tem espaço. Basta a gente acreditar e querer fazer”, diz. Spok, que iniciou a carreira musical aos 13 anos, já tocou com artistas como Elba Ramalho, Naná Vasconcelos e Alceu Valença. Atualmente, é músico do cantor e compositor Raimundo Fagner e arranjador da Banda Sinfônica da Cidade do Recife. Com o grupo, criado em 1996, participou recentemente de CD de Antônio Nóbrega e dos discos da prefeitura em comemoração ao centenário - enquanto conversávamos, no estúdio ao lado, seus músicos botavam os instrumentos na gravação de Frevo Diabo, composta por Edu Lobo e Chico Buarque.

“Toda música que não é tocada tende a desaparecer, a cair em desuso”, diz o maestro e compositor Clóvis Pereira. Para ele, o frevo é uma música pouco executada - em Recife, apenas a Rádio Universitária dedica espaço ao ritmo em sua programação - e que passou muito tempo sem encontrar espaço na mídia. Os meios impressos seriam os que mais falariam sobre o frevo. Mesmo assim, por meio de textos que insistiriam em sua decadência. Sobre o centenário, ele lembra que a comemoração é feita a partir de data fictícia, uma vez que não se poderia determinar com exatidão o nascimento de um gênero musical. Na opinião de Clóvis, quando da primeira publicação da palavra frevo, pensava-se na animação das pessoas e não no ritmo em si. Ele lembra que, quando criança, ele mesmo tinha de “deixar de frevo” ou apanharia da mãe. Durante a entrevista, Clóvis trouxe à baila uma ilustração publicada no Jornal Pequeno de 22 de fevereiro de 1909, em que se lê a frase “Olha o frevo”. O desenho, que toma boa parte da página do vespertino, mais lembra uma noite do afamado Moulin Rouge que uma folia de momo recifense - nela, mademoiselles de longos vestidos, colos nus, cabelos devidamente presos e máscaras dançam alegremente com seus respectivos misters, de cartola e vistosos bigodes.

DE 1909 PARA O PRESENTE - Ela tem 17 anos e cursa Publicidade e Propaganda na Universidade Salgado de Oliveira (Universo), mas por muito tempo Saffira Presbytero Reis foi conhecida como a embaixatriz mirim do frevo. Ela começou a dançar profissionalmente aos sete anos - mas já arriscava os primeiros passos aos três - e encantava os turistas que iam à loja de artesanato de seus pais, em Olinda, com histórias sobre o ritmo e de-monstrações de dança. Mas foi ao ser clicada para a primeira página de um jornal que ela conheceu o sucesso. E vieram os convites para programas como o do Jô Soares, Hebe Camargo e Raul Gil, bem como para figurar em capa de revistas e jornais e para mostrar sua desenvoltura com a dança em eventos nacionais e no exterior. “Nunca tive apoio algum, pelo contrário. Mas continuei com meu trabalho pelo reconhecimento do público, pois é gratificante saber que despertei em crianças e adultos o interesse por essa cultura tão linda que estava esquecida”, diz.

Para o Carnaval deste ano, porém, a passista guarda uma resolução forçada pela falta de apoio - sempre ela! - ao seu trabalho na dança. “Não pretendo continuar com a atividade que desenvolvi desde criança. Meu objetivo é vender o turismo do estado através da minha profissão de publicitária, não mais como frevista”, sentencia ela, que afirma continuar com as aulas de frevo que ministra para crianças carentes. “Os turistas se encantam com a beleza dos passos, as acrobacias, o figurino rico, a sombrinha, o ritmo... Eles ficam maravilhados com tanta beleza!”, conta ela, para quem o frevo deve ser usado como arma cultural para atrair turistas e fazer com que o setor cresça.

Falando em turismo, para o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis de Pernambuco, o empresário José Otávio de Meira Lins, o frevo já vem sendo trabalhado como um emblema de Pernambuco, estando presente em todas as apresentações para turistas. De acordo com Meira Lins, a diversidade do ritmo atrai “profundamente” a atenção de quem o ouve e, por isso, ele deve ser usado como embaixador do estado. “Onde quer que o turismo transcorra, há a cultura da terra e do povo onde a atividade ocorre. O que pode acontecer é que esta cultura esteja mais ou menos exposta para o turista”, afirma. O empresário ressalta que o ritmo, “contagiante e quentíssimo”, tem sido mais apreciado que dançado pelo turista e acredita que, justo pelas características do frevo, não são todos que podem se entregar a seus passos.

Calma, para esse problema há solução. “Qualquer pessoa pode aprender o frevo, mas tem que ir aos poucos”, diz Bárbara Hellioddora, responsável pela Escola Municipal de Frevo Maestro Fernando Borges, única do tipo no país. De acordo com ela, em seis meses, dependendo da dedicação às aulas, os alunos já saem dançando bem o ritmo. A instituição foi fundada em 1996 com a proposta de valorizar, fortalecer e divulgar a dança frevo; formar dançarinos e instrutores do ritmo; e contribuir para a inclusão social e geração de renda. Mais de cinco mil alunos, de crianças a adultos, já aprenderam os passos do frevo pela escola. E com a possibilidade de criarem sua própria coreografia: “É uma cultura muito viva. As coisas vão ganhando uma nova leitura com o passar do tempo, mas não deixa de ser frevo”, afirma. Há três anos, a escola mantém uma companhia de dança com vinte bailarinos para representar a escola e divulgar o ritmo mais característico de Pernambuco no país e também no exterior.

Voltando à música: “Eu sou louco o suficiente para dizer 'ouço frevo em tudo'!”. A afirmação vem do cantor Silvério Pessoa. “O frevo empolga! É sofisticado. Prescinde de uma orquestra, músicos competentes e intérpretes especí-ficos. Não é fácil cantar o frevo. No exterior, isso é valorizado”, diz. O artista, natural da cidade de Carpina, Zona da Mata Norte de Pernambuco, veio ainda adolescente para o Recife. Aqui, cursou Pedagogia e se dedicou ao ensino. Na música, Silvério lançou três CDs - o mais recente é Cabeça Elétrica, Coração Acústico -, conquistou prêmios como o Sharp e o TIM e fez turnês pelo Brasil e exterior.

Na opinião de Silvério, persiste um tradicionalismo que prende o frevo ao carnaval. Mesmo assim, o ritmo tem conquistado seu espaço na mídia - principalmente após o movimento mangue, liderado por Chico Science & Nação Zumbi, ter chamado a atenção para os ritmos do interior e da cidade e seu diálogo com outras culturas e possibilidades -, apesar de, lembra ele, não ser executado pelas rádios locais (“Isso continua sendo um absurdo!”). “O frevo pode ser diluído. Podem-se promover diálogos e experimentações com outros gêneros, ritmos e danças. Vejo nessa atitude uma maneira de ele transcender o carnaval e alcançar os ouvidos das novas gerações”, afirma o artista.

LILY, LILY, CADÊ VOCÊ? - Agora, um pequeno histórico sobre o frevo. Pode-se dizer que o berço de onde ele veio tem origem mista, tanto com elementos eruditos quanto populares. Ele surgiu no final do século 19, a partir da miscigenação de ritmos como a polca, o maxixe e o dobrado, bem como das quadrilhas de origem européia, misturados em um caldeirão que incluía a efervescência de uma classe mais humilde que começava a assumir seus espaços e desejosa de se reconhecer em um sistema de representatividade. Era um tipo de música que não entrava nos salões, tendo seu espaço natural nas ruas da cidade.

Nessa época, eram comuns as apresentações de bandas musicais que arrastavam consigo os capoeiras. Como a luta era proibida, eles encontraram nos passos embrionários do frevo uma forma de se expressar. A eles também é atribuída a adoção de um elemento típico dos passistas de frevo: a sombrinha. A rivalidade entre os dançarinos que acompanhavam diferentes bandas fazia com que alguns deles saíssem machucados. A aparente solução encontrada para não acabar na cadeia, ou no hospital, foi a adoção de guarda-chuvas comuns para atingir os rivais.

A partir de 1930, convencionou-se dividir o frevo em de rua, canção e bloco. O primeiro é puramente instrumental. O segundo é o que possui letra, a exemplo das poesias de Capiba. Enquanto que o último, mais lento de todos, é derivado das reuniões familiares - enquanto as esposas cantavam com as filhas, os maridos tocavam com os filhos e amigos. Este é acompanhado de orquestra de pau-e-corda.

FREVO NA CASA DAS IMAGENS - Suspensa no ar, uma mulher vestida de azul parece sorrir e acenar para o grupo de passistas que se apresenta em primeiro plano. Imersos em um ritmo fervente, pernas, braços, cabeças e guarda-chuvas perdem sua individualidade e se entregam a movimentos que fazem dos homens que os executam uma massa indistinguível a tomar conta das ruas recifenses. Imagem que belamente ilustra a primeira página desta edição, a tela Frevo (óleo sobre tela datado de 1945) tem seu original exposto não muito longe da capital Recife.

Ela também pode ser vista no alto de uma das paredes que compõem a casa de número 1416 da rua Hermínio Alves Queiroz, em Piedade, Jaboatão dos Guararapes. É nesse en-dereço, um tanto bucólico e discreto, apesar dos gritos que ecoam de homens disputando passageiros para seus micro-ônibus, da música de gosto duvidoso que embala refeições rápidas no meio da rua e da indiferença de muitos transeuntes, que funciona o Instituto Cultural Lula Cardoso Ayres. Além da já citada pintura, o local abriga boa parte da produção do artista que lhe empresta o nome, que fez de cenários para teatros e caricaturas para revistas e jornais a fotografias, murais, pinturas, decorações e programação visual.

O Instituto compreende o Museu Lula Cardoso Ayres, que apresenta exposições temporárias e mostra permanente do artista; a Galeria Lourdes Cardoso Ayres, batizada em homenagem a sua esposa, que abre espaço para novos e consagrados talentos na pintura; a Escola de Arte Lula Cardoso Ayres, por meio da qual são oferecidos cursos como desenho e pintura e história da arte, cinema e fotografia; a Sala Alberto Cavalcanti, que abriga as projeções semanais de cinema, além de cursos, debates e palestras ligadas às artes em geral; a Sala Gilberto Freyre, formada de biblioteca com mais de quatro mil obras e periódicos voltados ao cinema e às artes plásticas e de arquivo específico sobre a obra de Lula Cardoso Ayres; e o Arquivo Cultural Aranha de Moura, que abriga a cinemateca, uma disco-teca especializada em trilhas sonoras e registros da época das big bands, uma coleção de vídeos clássicos e um acervo dedicado à vida e carreira da atriz americana Marilyn Monroe

Sobre a cinemateca, são mais de três mil títulos do período que compreende o cinema mudo, alguns deles anteriores à criação dos irmãos Lumière, e início do falado, além de filmes do cinema brasileiro de 1930 a 1960. Alguns dos títulos não são encontrados em nenhum outro lugar do mundo, como três filmes de Buster Keaton dados como oficialmente desaparecidos, mas que podem ser encontrados em versão integral na cinemateca.

O instituto é comandado pelo filho do artista, o engenheiro aposentado Lula Cardoso Ayres Filho, e sua esposa Regina Ayres Cardoso Ayres, artista plástica. Ele conta que a criação do espaço já vinha sendo gestada com seu pai ainda em vida, como forma de preservar e divulgar a obra dele. Mas foi somente em 1990 que o museu começou a ser projetado. A abertura ao público se deu três anos depois e, em 1996, teve início a série de exposições Lula Cardos Ayres, Vida e Obra, que tem sua sétima edição Lula e as Lendas e Assombrações do Nosso Povo prevista para acontecer neste primeiro semestre.

Apesar do reconhecimento alcançado com o público, artistas e pesquisadores, as dificuldades financeiras do local são a preocupação constante do casal, que tem contado com o apoio da Chesf para a realização das exposições. A agência Mart Pet cuida da criação de logomarcas e material publicitário e a gráfica FacForm, da confecção de toda produção impressa. Uma ajuda e tanto ao que é considerado o maior museu privado do Brasil dedicado a um único artista, e que anda meio esquecido pelos pernambucanos em geral. Os obstáculos, no entanto, não têm limitado os movimentos do instituto, que espera chegar a bem mais pessoas por meio do www.lulacardosoayres.com.br.

Nascido no Recife de 1910, Lula Cardoso Ayres inicia seus estudos de desenho e pintura com Heinrich Moser. Em 1925, com 15 anos, se muda para Paris, onde convive com a vanguarda da arte moderna. De volta ao Brasil, passa a ser aluno da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. O período marca sua amizade com Cândido Portinari, que exerceria grande influência sobre sua arte. Novamente em Pernambuco, se muda para a Zona da Mata para ajudar o pai na administração da usina da família. A partir de 1946 fixa residência permanente em Recife. Seu primeiro trabalho data de 1921 - a imagem de um casal feita em aquarela e nanquim. O último é um quadro inacabado de 1987, ano de seu falecimento.

Anderson Lima

Fonte: http://www.revistapronews.com.br/edicoes/87/capa.html