Acauã
Pedro é o meu nome. O mesmo nome daquele que descobriu o Brasil, o mesmo daquele que o tornou independente, o mesmo de tantos outros brasileiros.
Só que eu sou brasileiro mesmo. Eu sou índio, nascido no Amapá. Minha tribo é a Korepuna , e meu nome indígena é Acauã que quer dizer “grande ave que ataca as serpentes”.
Tenho estatura mediana, sou magro, forte, meus cabelos são lisos e pretos, cortados em “tigelinha”, olhos um pouco puxados, que já foram confundidos com olhos orientais, minha tez é morena, e sou pelado; é: índio não tem pêlo.
Estava em minha terra natal, era aniversário de minha avó. Ela completou cem anos. Tem saúde ainda, física e mental. Meu avô, já completou cento e dois anos, e minha mãe, assim como meu pai fizeram oitenta e dois anos de idade.
Somos uma família grande, cinco homens e cinco mulheres. Eu sou o filho número nove, e tenho quarenta e três anos.
Aquela festa foi motivo de encontros e reencontros para mim.
Reencontrei parentes e amigos que não via há cinco anos, e encontrei pessoas que são da minha família e que nunca tinha conhecido, é muita gente.
Como era festa estávamos vestidos a caráter. Usávamos pouca roupa e muita pintura. Tudo isso porque a maioria de nós já se travestiu de “homem branco”. A maior parte das crianças freqüenta a escola, todos usam camisetas, calças, chinelos e temos rádio e televisão. É uma vida muito boa, de integração, sem deixar de lado a nossa cultura, todos falam nossa língua mãe.
Durante a festa, minha avó me chama, me olha com aquele olhar de que vai dar bronca. Eu já conheço, desde menino quando ela me olhava com um olho mais apertado que o outro e o cigarro de palha no canto da boca, eu sabia que vinha bronca.
Mas daquela vez me enganei, ela me chamou para dentro de sua casa e perguntou por que eu não continuava ali. E eu respondi como sempre, que tinha resolvido viver a cultura brasileira, porém, a moderna. Que nós precisávamos de pessoas cultas, entendidas e qualificadas para sermos compreendidos por todo o país, etc. e tal.
E ela me disse para parar de falar que isso ela já sabia. Queria saber quando eu ia criar raízes e ter uma família.
Aí ela me pegou de surpresa. Moro no Paraná há treze anos, sou gerente de uma grande loja, na qual trabalho há nove anos. Para os parâmetros indígenas já sou velho demais para ser solteiro. Todos os meus irmãos são casados, tenho mais de vinte sobrinhos. Expliquei de novo que luto pelo índio, pela sua cultura e que trabalho, e muito, para isso. E se fosse parar para me dedicar à família, que é o que manda a tradição, acabaria com a minha batalha de tantos anos.
Minha avó fez um sinal de que já estava boa a explicação e perguntou quando eu ia embora. E eu falei que iria no começo da semana seguinte, pois era fevereiro, carnaval, e muita gente tira férias nessa época, e eu que já estava fora há quinze dias, precisava voltar.
Num relance de momento, parecia que não estávamos mais ali, que já não era mais minha sábia avó que falava comigo, mas alguém muito maior que todos nós naquele lugar. De repente o mundo se resumia a aquela sala, tudo ficou quieto, parecia que só existia luz vindo dela. E olhando direto para meus olhos, ela disse numa voz grave e firme que eu nunca tinha ouvido antes:
“Acauã, você sabe que está errando. Muda, antes que todos conheçam a verdade”.
E tudo voltou ao normal. Eu, em choque e de queixo caído; minha avó, não lembrava de nada.
O dia foi passando, eu fiquei inquieto no começo, mas depois aquela sensação estranha foi indo embora. Era muita festa, gente, bebida, comida, carinho.
Na quinta-feira peguei um avião que fazia escala em São Paulo, para ir para o Paraná. Alguns irmãos me acompanharam até o aeroporto, e nos despedimos com a promessa de que da próxima vez eu não ia demorar tanto para voltar.
Voei, e quando cheguei a São Paulo, fui para onde não via a hora que chegasse para poder ir.
Minhas férias só acabariam no final de fevereiro, depois de um elaborado carnaval.
Embarquei novamente e aterrizei no Rio de Janeiro, onde alguns amigos já estavam me esperando com minha fantasia pronta.
Desfilamos todos os anos em blocos e escolas de samba. E nesse ano, o nosso bloco fez uma homenagem às grandes atrizes da década de 1940. Vesti-me pomposamente de Carmem Miranda, uma homenagem minha à mais brasileira das estrangeiras.
Na madrugada de sexta-feira, durante os intermináveis desfiles, uma briga começou próxima de mim, e mais do que depressa tinha uma emissora de televisão local filmando tudo. Como uma pessoa tinha sido ferida e eu tinha visto tudo, vieram me entrevistar.
Rapidamente pensei, “A TV é local, ninguém vai me ver”. E deslumbrado com o “momento televisão” e com a inveja que provocaria em meus amigos, falei e fiz gestos demais.
Não sabia eu, que a pessoa ferida era um famoso ator global, e aquele pequeno incidente virou primeira página em todos os jornais, revistas e mídias possíveis. Aquela entrevista para uma pequena emissora de televisão passou a valer ouro. E a minha cara estava em todos os lugares, do Oiapoque ao Chuí.
Não me preocupei com a minha vida da cidade grande, e sim com a minha família.
Quando cheguei em casa, o telefone estava tocando, era meu irmão mais velho, dizendo que eu era uma vergonha para a nação indígena, e que para eles, eu tinha morrido.
Vergonha, fiquei com muita. E tive a mesma sensação de mundo mínimo ao meu redor quando ouvi dentro de mim aquela mesma voz dizendo:
“Pedro, brasileiro, índio e morto.”
Rita Vaz