O DIA DE REIS E OS CARREGADORES DE PIANO
O dia de Reis era entre nós festivamente celebrado pelos pretos.
Os do bairro comercial do Recife, que se empregavam na condução de mercadorias, formavam-se em grupos a que chamavam companhias, dirigidas por um mestre ou capataz, que distribuía o serviço e pagava os salários aos sábados, como hoje se vê com as companhias de carregadores de açúcar e algodão, e de embarque e desembarque de mercadorias diversas.
Outrora, tinham estes ganhadores ou condutores de mercadorias, um governador, que tinha uma certa ascendência sobre eles, e gozava mesmo, para o bom desempenho do seu cargo, de umas tantas prerrogativas e regalias; e era nomeado pelo governador da capitania, como se vê da patente passada ao preto Cosme de Azevedo, em 14 de novembro de 1781, — para exercer o cargo de governador dos pretos ganhadores desta praça, pelo tempo do costume, e enquanto procedesse de sorte que nele merecesse ser conservado, gozando da jurisdição que lhe competia.
Os que se ocupavam, porém, no serviço de fretes de caixas de açúcar, formavam uma corporação a parte e tinham o seu governador especial, como se vê da provisão de 13 de setembro de 1776, passada pelo governador José César de Menezes, pela qual foi nomeado o preto crioulo Manuel Nunes da Costa governador dos pretos de caixas de açúcar desta praça, sem tempo determinado, mas — enquanto procedesse como devia, gozando da jurisdição que em razão do mencionado cargo lhe pertencia; — concluindo o governador, ordenando ao rei do Congo e mais oficiais, que, como tal o reconhecessem, honrassem e estimassem, e dando-o por empossado no seu cargo, recomendou-lhe muito — "o sossego e vigilância, que deve ter o governo dos seus subordinados, a quem também ordeno que lhe obedeçam e cumpram as suas ordens relativas ao real serviço e bem público assim como devem e são obrigados."
Por essa época, e mesmo posteriormente, os pretos empregados no serviço dos fretes, faziam-nos não só à cabeça como também em carretas especiais, quando se tratava de um volume de grande peso, como por exemplo, de uma pipa de vinho.
Essas carretas eram puxadas a tirantes por uns cinco ou seis homens, e empurradas por um; e para os volumes de peso menos considerável havia umas outras menores, puxadas por dois homens presos às mesmas por largas correias passadas aos ombros e tiracolo, e empurradas por um outro. Madame Graham, que esteve em Pernambuco, em 1821, consigna na sua obra uma estampa, representando uma dessas carretas maiores, em movimento, por meio dessa tração humana...
Os pretos desse serviço, livres ou escravos, não trabalhavam na véspera de Reis; e reunidos pela manhã, alegres e contentes e formando um numeroso cortejo, indo no coice um deles sentado sobre um caixão, empunhando uma bandeira, e carregado aos ombros pelos companheiros, partiam então, cantando uns versos em uma toada de marcha, e dirigiam-se às casas dos seus fregueses e pessoas diversas para dar-lhes as boas festas, a todos os quais, em agradecimento pelas espórtulas prodigalizadas, erguiam vivas ao estourar de foguetes.
Terminada a folgança, reuniam-se os mestres, contavam o apurado e procediam a sua distribuição entre todos, que assim ficavam com recursos para passar à larga e festivamente o seu dia de Reis.
Das cantilenas dos Reis, não conseguimos nenhuma de suas letras, apesar de não ser muito remota a época do seu uso; mas sendo esse costume originário de Portugal, como muitos outros, é natural que fossem elas as mesmas, ou pelo menos, no mesmo sentido das portuguesas em iguais folganças; e assim, consignamos aqui as duas seguintes quadrinhas, como uma idéia da urdidura das nossas:
Vimos dar as boas festas
E também cantar os Reis:
Vimos ver os nossos brios
Que alguma coisa nos deis
Vimos dar as boas festas
A estes nobres senhores
Que já nasceu o menino
Em Belém entre os pastores
Restam-nos, porém, as cantilenas dos carregadores de pianos, umas ainda em voga, e outras não. São estas:
Iaiá me diga adeus
Olhe que me vou embarcar
Que o vapô entrou na barra
O telegra fez sinal
Lê, lê, lê, iaiá
Vamos rir, vamos chorar
Que o vapô entrou na barra
O telegra fez sinal
Zomba, minha negra
Zomba, meu sinhô
Quem quiser se embarcar
O trem de ferro já chegou
Quem quiser se embarcar
O trem de ferro já chegou
Embarca, minha velha
Pule fora, meu ioiô
Minha mãe me deu
Com o machucadô
Quebrou-me a cabeça
Mas não me matou
Água de beber
Ferro de engomar
Minha mãe me deu
Foi pra me matar
Ê, ê, iaiá, vá chorar
Lá pra banda do zonguê,
Porque se mata esse bicho
Com caroço de dendê
E esta coligida por Sílvio Romero:
Bota a mão
No argolão
Sinhazinha
Vai tocar
Afinador
Vem afinar
Sinhazinha
Vai pagar
Os pianos são geralmente carregados por seis homens, três na frente e três atrás, com as mãos apoiadas sobre os ombros dos parceiros. A cantilena, que entoam em marcha um tanto acelerada e com cadência própria, é tirada pelo mestre e respondida em coro pelos companheiros, e geralmente bem entoadas, são algumas delas muito bonitas e melodiosas mesmo, e tudo por eles próprios arranjado.
F. A. Pereira da Costa
Do livro:
Folclore pernambucano - subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco
Fonte: http://www.jangadabrasil.com.br/janeiro29/of29010b.htm