DIA DA MENTIRA
“Na mentira / expressa / sua vontade / ou sonho / o outro lado / do desejo /
de que tudo pudesse / ser diferente / como feito / com efeito / afeição.”
(Pedro Du Bois)
Du Bois, através do seu poema, mostra-nos como Carlos IX, rei da França, fez valer a sua vontade “com feito e efeito”.
Segundo a lenda, o “dia da mentira” surgiu em 1564, quando o rei da França determinou a adoção do calendário gregoriano, passando o ano a ter início em janeiro. Antes o ano novo era comemorado em 1º de abril. Alguns franceses resistiram à mudança ou se esqueceram dela, abrindo caminho para que os brincalhões pregassem peças, como enviar presentes “esquisitos” e convites para festas, de mentira, em 1º de abril. A tradição se espalhou pela Europa e foi trazida para o Brasil pelos portugueses.
É uma brincadeira, como bem expressou Mário Quintana: “Mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer...” E, Leila Míccolis escreveu:
“Naturalmente devemos ter herdado este costume de algum país europeu sério, de política e idioma rígidos. Países para os quais um dia de mentira já é muito, e, assim mesmo, só de brincadeira. Entre nós, porém, em que a brincadeira de mentir é levada a sério, festejar a data como sendo especial, é — convenhamos — o máximo da troça. Está certo de que nenhum Dia da Verdade vingaria por aqui: a nação ficaria vazia, com a população viajando em massa neste dia, debandando rápido, como se corresse de um iminente tufão, furacão ou qualquer outra calamidade pública. Daí, porém, a escarnecer do outro, me parece demais”.
Desde então, comemora-se o “dia da mentira” em 1º de abril, para ser lembrado como o dia dos “trotes”: alegre, descontraído e envolvido com os amigos – num livre pensar; e Du Bois nos dá a sua versão sobre as mentiras:
“Na mentira, todas as possibilidades. / Confirma o fato, / diz o que bem entende. //
Na mentira, a perna curta / no desenrolar da conversa / Nada aconteceu
como conta / reconta de maneira vaga. // Na mentira não há trabalho de parto /
versões acontecem / multiplicados clones / sem veracidade.”
ECOS DA REALIDADE
No poema “A Implosão da mentira”, de Affonso Romano de Sant'Anna, encontro a declaração da mentira como ecos da realidade.
“Mentem, sobretudo, impune/mente. / Não mentem tristes. Alegremente / mentem. / Mentem tão nacional/mente / que acham que mentindo história afora / vão enganar a morte eterna/mente”.
Parece ser o que realça o poeta; aí encontro o contexto que atinge o homem em momento de pura eternidade.
“Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases / falam. E desfilam de tal modo nuas / que mesmo um cego pode ver / a verdade em trapos pelas ruas”.
O poema abrange duas correntes críticas: de um lado, uns caminham para a mentira e, do outro, acreditam na mentira como verdade. Affonso, com o poder de toque próprio, mostra ideias abordadas na poesia, de que o homem maneja elementos de verdade e tenta dar-lhes forma e consistência, defendendo sua sobrevivência.
“Sei que a verdade é difícil / e para alguns é clara e escura. / Mas não se chega à verdade / pela mentira, nem à democracia / pela ditadura”.
Há lucidez entre verdades-mentiras e o poeta, na obra, concede a extensão das possibilidades de a poesia ser poesia, permanecendo entre nós as suas palavras e o lado “claro e escuro” que o torna ponto de referência para o caminho do leitor.
Affonso, no poema, como manifesto, realiza uma poesia diferente, que faz sentir o espírito de uma época; ecos da realidade que ligam a arte de escrever com a arte de viver, em processo que tem por cenário a palavra mentira, como questionamento, sem perder a capacidade de acreditar.
“Mentiram-me. Mentiram-me ontem / e hoje mentem novamente. Mentem / de corpo e alma, completamente. / E mentem de maneira tão pungente / que acho que mentem sinceramente”.
O poema, A Implosão da Mentira, é o estado natural que une o momento à invenção da verdade, como conversa em que a mentira assume sua nossa vivência. Ele, à sua maneira, deixa marcas sobre o contexto que nos move diariamente.
“Página branca onde escrevo. Único espaço / de verdade que me resta. Onde transcrevo / o arroubo, a esperança, e onde tarde / ou cedo deposito meu espanto e medo. / Para tanta mentira só mesmo um poema / explosivo – conotativo / onde o advérbio e o adjetivo não mentem / ao substantivo / e a rima arrebenta a frase / numa explosão da verdade. // E a mentira repulsiva se não explode pra fora / pra dentro explode / implosiva”.
Ecos da realidade reflete a poesia de Sant'Anna, sensivelmente estruturada em relação à consciência e à vivência, permitindo ver a realidade e a natural reação ante a mentira. É poesia de pequenas/grandes verdades, vivíssima e atuante no leitor. Revela as mentiras reconhecidas pelo poder: o tempo dando vazão aos acontecimentos e nos ensinando a sobreviver.
Tânia Du Bois