A Muralha da China
Em “Outras Inquisições” Borges menciona o imperador Shih Huang Ti que ordenou que se construísse a infinita muralha para defender-se da invasão de bárbaros, e que todos os livros existentes antes dele fossem queimados, possivelmente para defender-se dos pensamentos e idéias que pudessem despertar seus súditos do sono da escravidão. Renunciar ao passado e isolar o império do mundo foram medidas que influenciaram o destino daquele povo. Ele, como tantos outros déspotas construtores de muralhas, não chegou a compreender que as soluções dos problemas humanos dependem do entendimento e da união entre os homens. Não se pode apagar a Verdade que possa estar contida nos livros, pois está estampada na Natureza e inscrita nas consciências. E piores são as muralhas mentais que separam a alma humana de sua consciência, tornando os homens violentos, irascíveis, desumanos e desunidos.
Os imperadores, os reis e os ditadores sempre estabeleceram uma sutil ligação entre teologia, tirania e despotismo. Os deuses inventados pelos homens sempre foram invocados para justificar atrocidades inomináveis, a escravidão e o terror. E não há maior terrorismo que a abominável submissão imposta aos seres pelo temor e pela mentira. Os escravizadores são os impostores de uma teocracia absurda que muitos chamam de política, que deveria ser a arte de gerir o bem comum, mas passou a ser a arte de chegar ao poder e permanecer nele indefinidamente.
O esférico Deus de Hermes Trimegistus, “uma esfera inteligível cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma”, não quereria súditos escravizados, temerosos e ignorantes, porque vivendo em seus corações, não poderia ser contrário ou inimigo de Si mesmo, que tudo contém e que se confunde com a própria Criação.
Ao invés de construir muralhas, o ser humano do futuro construirá pontes mentais de entendimento, caminhos que unam os homens e que integrem os fragmentos perdidos para que possam sentir e compreender o Deus único que está eloqüentemente presente nos grandes sentimentos, como na amizade, verdadeira ponte invisível que permitirá que a humanidade subsista.
O amigo que se ausenta deve ser recordado sempre para que não morra pela segunda vez; a sua sobrevivência dependerá desta recordação que será um tributo àquele espírito que continuará vivendo. E serão os nossos amigos que estarão presentes nas celebrações da vida e da morte. A amizade não pode ser uma ligação passageira e interesseira, senão a confortante experiência de estar acompanhado. E não se pode ser amigo de alguém se não se é de si mesmo. O sopro divino que habita o coração dos que são amigos desconhece as grosseiras muralhas dos defeitos pessoais. A amizade, em seu profundo significado, implica o amor que é a síntese e a essência do Deus único. Um amigo é como um espelho que pode nos ajudar no caminho evolutivo. Nesta mágica relação poderemos aprender muito.
Diante de uma ausência que parece ser irreparável, deveremos pensar que a vida celebra a vida, e que a alegria e a amizade sustentam o ser humano nos anos de sua vida terrestre. E que essa ausência não é mais que um sinal e um convite para que continuemos a nos ver e a nos falar através da recordação.
A amizade é um sentimento que dignifica a espécie humana; capaz de elevar a conduta pessoal a níveis de desprendimento, humanismo e heroísmo que chegam a surpreender a opinião do mais frio observador. No entanto, apesar disto, é fugaz, efêmera. Quantos distanciamentos incompreensíveis! Quanto sofrimento nas separações que jamais se cogitou! Quanta incompreensão! E a que se deve tudo isto? Por que o sentimento morre como se nunca tivesse existido?
Um amigo é uma riqueza imponderável que nos acompanha sempre. Nem mesmo o distanciamento ou a morte poderá abalar uma amizade conscientemente cultivada. Cada amizade é como uma planta que poderá florir se dispensarmos a ela o cuidado que exige tudo aquilo que queiramos que seja permanente em nossa vida.
Nagib Anderáos Neto