Olhando o relógio entrei no consultório da psicóloga
indicada. Não a conhecia ainda mas estava acostumada a lidar com
esses profissionais desde muito pequena. E no momento acreditava que estava
precisando de uma terapia, porém não muito intensiva.
A porta abriu e a secretária pediu que eu entrasse e consegui
lodo divisar uma figura extremamente simpática que evidentemente
era Dra Maria Lúcia.
Sorrindo ela me estendeu a mão sem levantar da poltrona confortável
em que estava acomodada.
Não estranhei a atitude e imaginava que ela quisesse me deixar
à vontade.
Durante alguns meses freqüentei aquele lugar e me sentia extremamente
tranqüila.
Não era referente ao tratamento pois já havia feito
em várias ocasiões terapias curtas e a espécie de
calma que me dominava no momento era algo diferente que eu não saberia
definir.
Acreditava que o ambiente, a bondade extrema de minha psicóloga,
querendo sempre a todos ajudar e a naturalidade de seus atos considerados
exóticos estavam realmente me fazendo um bem enorme.
Chegava regularmente cedo porém na hora exata sempre a encontrava
já acomodada em sua sala.
Ela costumava dizer que o lugar era seu mundo e se sentia em paz toda
vez que cruzava seu gabinete de trabalho.
Um dia, entretanto não a encontrei como de costume e antes mesmo
que eu pudesse constatar a atendente me pediu desculpas dizendo que Dra
Maria Lúcia tivera que fazer uma cirurgia de urgência e não
dera tempo de avisar.
Aquiesci compreendendo mas achei muito estranho e durante seis meses
não pude completar o tratamento pois a operação tivera
implicações e ela nem recebia visitas.
Estivera até mesmo em coma e eu aflitivamente acompanhei a evolução
pedindo notícias regularmente.
Dra Maria Lúcia por várias razões até mesmo
porque conhecera meu pai tornou-se para mim uma figura extremamente amiga
o que não é comum em relações profissionais.
E eu me afeiçoara sinceramente e sabia que era recíproco.
Consegui visitá-la afinal e a encontrei muito bem disposta.
Mas havia nessa mulher algo, como se quisesse esconder alguma coisa, que
talvez me magoasse.
Não tinha nenhuma razão pra ter esse tipo de pensamento
e tirava-o constantemente da minha cabeça.
Voltando ao consultório pude constatar o que já sabia
apenas em conversas. Ela era muito mística. Acreditava sinceramente
em Deus com uma fé inabalável.Não queria convencer
a ninguém de nada mas ao mesmo tempo a crença e generosidade
eram tão evidentes que sua influência era natural.
Trabalhava demais, tinha um grupo infantil que ela não abria
mão e costumava receber pessoas que estavam martirizadas pelas drogas
ou por outra dependência qualquer.
Vira receber essas pessoas em momentos urgentes e nada exigia de pagamento
ou recompensa.
Cada vez admirava mais aquela senhora que aparentemente saudável,
sofria de dores das quais entretanto não queria falar.
Um dia perguntei-lhe porque trabalhava tanto se tinha o bastante para
sobreviver e porque fazia isso em horas tiradas de seu repouso.
Olhou-me com simpatia e seu olhar estava distante e concentrado quando
falou:
— É o amor. Amor universal. Sabe que isso é a coisa mais
importante da minha vida?
— Mas e a sua vida particular? Sua casa, seus amigos e interesses?
— Tudo isso é contornável. Pode ficar certa que é
possível unir as coisas. Sou feliz , não é o que importa?
— Maria Lúcia, sinto que você se dedica aos outros mas
há algo que me parece estranho. Não sei o que é.
— Não pense nisso agora. O que importa é que você
está conseguindo vencer as pequenas tensões que tanto lhe
incomodavam.
Muitas vezes ficava olhando a figura suave daquela profissional que
trabalhava quinze horas por dia e jamais desde que eu a conhecera, pelo
menos, pensava nela mesma.
Um dia conversando com a secretária Janete ela inadverditamente
comentou sobre as dores violentas que Maria Lúcia sentia à
noite depois de um dia exaustivo.
Comentei que talvez se ela andasse um pouco fazendo exercícios
pelo menos uma vez em tantas horas, aliviasse a posição obrigatória.
A moça não me respondeu e daí em diante evitava
conversar.
Sempre notara como essa profissional dedicada que dirigia sua vida
para fim comum e nobre, em oportunidade alguma chegava atrasada. E mais
de uma vez vira seu marido tratando ali na ante-sala de problemas corriqueiros.Ela
não o fazia.
Estava perto do fim de meu tratamento quando reparei que suas mãos
estavam encurvadas e ela nunca escrevia ou pegava qualquer coisa a seu
lado.
Nem um copo de água.
Tinha tanto carinho e admiração por aquela mulher que
me preocupava por ela sinceramente. Perguntei-lhe se estava com alguma
espécie de reumatismo e ela muito evasivamente contou-me que tinha
uma artrite insistente. Fazia tratamento e o motivo da cirurgia fora aquele.
— Quando me operei, fiquei em coma, mas vou contar-lhe uma coisa que
nunca relatei a ninguém. Sei que permaneci alguns dias no coma e
o médico já me desenganara. Voltei, no entanto porque precisava
ainda fazer muita coisa e Jesus sabe disso.
Olhei-a espantada, conhecendo a sua sensatez inconfundível.
— Não me olhe assim. Nunca contei a ninguém, isso. Mas
em você tenho tanta confiança e preciso falar com alguém.
Nesses dias tinha consciência que estava em algum lugar diferente.
Andávamos com roupas compridas e brancas e por duas vezes conversei
com um mestre parecido com Cristo. Pedi para voltar, pois achava que ainda
precisava fazer muita coisa. Ele respondeu-me que se voltasse ainda iria
sofrer muito e eu concordei. Mas precisava voltar.
- Acredita que foi um sonho pela alucinação do coma?
- Não acredito nisso. Não foi um sonho. Estou aqui, estou
sofrendo como ele disse.Entretanto sou pequena demais para ver e falar
com o Mestre. Não sei o que pensar.
Olhei-a longamente segurando entre as minhas a mãos que a artrite
deformara, procurando infundir-lhe um pouco de calor.
Quase no fim de meu tratamento cheguei mais cedo, pois precisava tentar
ser atendida antes do meu horário. Não avisei porque sabia
que a psicóloga estava no consultório quase de madrugada.
Quando saí do elevador deparo-me com uma cadeira de rodas, de
costas e quando passo por ela e instintivamente olho para trás,
lá estava a Dra. Maria Lúcia empurrada pelo marido, com um
sorriso nos lábios pintados de batom claro, a mesma figura impressionante
e carismática de sempre.
Sem palavras, o olhar assustado, a dor magoando meu peito compreendi
tudo. E antes que eu falasse ele me disse:
— Não diga nada, querida. Quem está fazendo terapia é
você, não eu. Estou bem. Apenas não posso andar e é
por isso que tenho a falta de educação de não me levantar
quando você entra em meu consultório.
— E por que não me disse nada?
— Para que? Isso só iria deixá-la chocada. Aconteceu.
Vamos. Vamos entrar.
Fiquei parada, petrificada pelo choque e entendendo que talvez o mestre
como ela dizia tivesse razão.
Ela morreu poucos meses depois e jamais esquecerei tão doce
pessoa que ornamentou minha vida de maneira muito especial e lamento não
ter compreendido tudo muito antes para que pudesse dar-lhe uma atenção
mais confortável.Lamento profundamente.
Vânia Moreira Diniz
OBS: Os nomes dos personagens foram alterados para preservar suas identidades.