A POESIA DA MINHA GERAÇÃO: BREVE DEPOIMENTO

Sucintamente teorizada, minha geração poética não pode ser dissociada da música popular, em sua trajetória conceitual. Isso não se deve apenas ao fato de que, depois de Vinícius, alguns poetas maiores estão mais ligados ao disco que ao livro, mas também ao fato de que, com o advento do rock, os jovens (entre eles os novos poetas) tiveram (e quiseram ter) mais acesso ao disco.

Nesse contexto, se os três grandes movimentos da MPB foram a bossa nova, o tropicalismo e o pós-tropicalismo, os poetas acompanharam o ritmo com o concretismo, a poesia marginal e o pós-modernismo, respectivamente. A bossa nova representou uma elitização do novo; o tropicalismo, uma elitização do popular; o pós-tropicalismo, uma popularização dos elitismos, com tudo o que isso implica em termos de empobrecimento, comercialização e reciclagens oportunistas.

Quando peguei o bonde, estávamos no segundo movimento. O rigorismo bossanovístico dos concretos cedia espaço aos "desbundados" que, sob a sola da bota do AI-5, rastejavam como baratas tontas em busca dum abrigo, no caso dos poetas um referencial estético/político. Assim como o tropicalismo democratizara gêneros e estilos, os poetas marginais reproduziram, ainda que improvisadamente ("espontaneísmo", diriam os críticos), tendências precedentes (coloquialismo modernista) de cambulhada com fenômenos do momento (alienação hippie, drogas, resistência antifascista).

Cursando biblioteconomia e letras, leitor voraz apesar da deficiência visual (ou por causa dela), eu estava mais preparado intelectualmente que a média dos poetas marginais, mas isso não significa que meus contemporâneos não me tenham influenciado. Ao contrário: fiquei ainda mais atento àquilo que rodeava meu isolamento existencial. Dos concretos (particularmente Augusto de Campos) eu já admirava o apuro formal e o embasamento teórico. Dos marginais reaproveitei consciente e deliberadamente algumas características individuais ou coletivas.

Em Bráulio Tavares reconheci a tradição cordelística e oral do Nordeste, somada à agudeza satírica e à informação contracultural; em Paulo Augusto reconheci a coragem e a franqueza de abordar explicitamente o homoerotismo; em Leila Míccolis reconheci, ainda mais forte que na estudada Ana Cristina, a presença feminina e sua capacidade de questionar padrões morais e sexuais; em Chacal, Cacaso, Chico Alvim e outros mais enturmados (grupos Pindaíba, Sanguinovo, Nuvem Cigana) reconheci a sensibilidade e a sintonia para/com seu tempo e seus contemporâneos, bem como a capacidade/necessidade de participar solidariamente; em Leminski reconheci o talento criativo como vítima da vaidade e da autopromoção, até como sinal de alerta para aquilo que eu sempre quis evitar, ou seja, o estrelismo; em Roberto Piva, enfim, reconheci o autêntico espírito "maldito", ou seja, a fidelidade à própria biografia, que alimenta a lenda graças à magia pessoal, cultivada com a convicção de quem transforma o vício em virtude, o chulo em luxo, o sujo em polido e o feio em sublime.

Assim vejo alguns companheiros de jornada, e assim vejo a própria jornada: individualidades compartilhando diferenças sob a intempérie da opressão maior, como refugiados da tempestade numa cabana perdida, trocando causos de Boccaccio em dialeto de Bocage e ao som duma trilha de filme da Boca do Lixo.

São Paulo, inverno de 2000.

Glauco Mattoso


 

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