HILDA HILST
A CONSCIÊNCIA INQUIETA E ATORMENTADA (*)

Encontrei Hilda Hilst pela primeira vez numa primavera de 1990: ventava com violência, nuas as árvores da Alameda Tietê. No silêncio da tarde que findava pensei nas galáxias em que Alice Carroll se perdeu, no ventre da baleia com Pinocchio. Reconheci a figura pequena, cabelos louro-avermelhados enrolados num coque, um cachecol de lã enterrado no pescoço, suster de gola rolê, calças confortáveis, olhos cintilantes, sorriso honesto. Hilda fez que não ouviu a pergunta inicial, cortando com a afirmação da crença em livros a serem relidos. “A montanha mágica, por exemplo”, insistiu, forjando a posição de ícone. Sentia-me muito jovem e incapaz de captar as frases anárquicas e inteligentes do maduro anjo exterminador. Ela me pareceu radiante; depois descobriria que escondia um coração ferido, uma luta genética entre o instinto de sobrevivência e autodestruição. Entrevistei-a informalmente sobre a criação do segundo livro de sua trilogia erótica, Contos d’escárnio – Textos grotescos, que seria publicado pela Editora Siciliano, onde eu atuava como divulgador e leitor crítico. Derrubada a muralha chinesa, contou-me como tudo começou: escritora desde 1950, em 1969 o crítico literário Anatol Rosenfeld elogiou publicamente suas peças inéditas e surgiu o deleite. Eu havia lido os originais dos polêmicos contos d’escárnio, cheios de gritos atormentados – de Fernando Pessoa a Bertrand Russel – e febril foi o impacto do existencialismo do personagem-escritor-suicida Hans Haeckel, dando-me fome de conhecer integralmente a criação da autora. Liguei para ela, pedindo exemplares de toda sua obra. Simpática, enviou-me o material esgotado em livrarias: Da morte odes mínimas (1979), Cantares de perda e predileção (1983), Com meus olhos de cão e outras novelas (1986), entre outros. Leitura hipnótica, a fruição da insensatez. O caderno rosa de Lori Lamby (1990), o livro que mais me interessou na ocasião, é uma risível, viciosa e apavorante pequena obra-prima. O humor do relato imaginário de uma menina-Lolita de oito anos, sem pudores, que se corresponde com os homens que favorece sexualmente. Para Eliane Robert Moraes, este livro depravado “inscreve-se numa das mais nobres tradições de literatura erótica, aquela que, para citar apenas alguns autores do século, passa pela obra de Guillaume Apollinaire, Pierre Louys e Henry Miller”.
O apartamento nos Jardins, onde a escritora hospedava-se, estava coalhado por palavras ousadas, personalíssimas. Ela citou o pensador Ernest Becker: “O medo da morte é a verdadeira fonte de nossa fragilidade”. Disse ter fé expressionista em Albert Camus, Franz Kafka, D. H. Lawrence e Emily Dickinson. Anunciou uma novela parodiando Diário de um sedutor do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard, que resultaria em Cartas de um sedutor.
Hilda nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, em 21 de abril de 1930. Durante um ano conheci seus segredos, vontades e pavores, como inquilino de fim-de-semana, na casa herdada de sua mãe no Parque Xangrilá, a 12 km de Campinas. A Casa do Sol é um celeiro de energia concentrada, fronteira de vários mundos. Não tem tapetes no chão, nem cortinas nas janelas. O fungo desenha mapas miúdos nas paredes. Floresta majestosa de livros que se erguem em todos os cantos: Ibsen, Tchekhov, Balzac, Stendhal, Goethe. Papéis, lápis, canetas orientais. Uma sala espaçosa, confortável. Amplas janelas que dão para um pomar. Numa extremidade discreta, uma gravura emoldurada de uma dama da Revolução Francesa, que acredita ser uma sua reencarnação. Cristais e uma lareira habitada por morcegos. Caixas, arcas, armários coloniais. O escritório em seu quarto, é o centro da casa. Ali, em torno de frustrações e desejos, escreveu seus melhores livros. Acima do jardim, o sol, a lua, as estrelas e nele, palmeiras, mangueiras e uma figueira encantada, centenária, atendendo súplicas. O ponto preferido dos elementais, os “espíritos da natureza”, como Hilda define-os. “Eles se materializam e se deixam ver só quando querem”, ensinou-me. Compromissada com o desconhecido, faz viagens astrais e prognósticos, vê bolas douradas no infinito e nebulosos vultos masculinos de lábios violáceos em trajes de época. Experimentou gravar vozes do além, depois de pesquisar o trabalho desenvolvido pelo pintor sueco Friedrich Jurgenson e mais tarde pelo Instituto Max Planck, de Munique. Anunciou sem calafrios que deus não era onipotente, estava condenado à solidão. Uma mulher envolvida em presságios e premonições.
Levanta por volta das dez horas e caminha lentamente até o canil, brincando e alimentando os animais. Como a liturgia de uma secular e rotineira missa barroca, lê aproximadamente oito horas por dia, seja em português, inglês, espanhol ou francês. Tem medo de avião, 1,62 de altura, não dirige automóveis, ouve Gustav Mahler e prefere a cor azul-turquesa. Tem como livro favorito, O morro dos ventos uivantes de Emily Brontë.. Escreve numa Olivetti portátil, formou-se na Faculdade de Direito da USP e nunca exerceu a profissão. Vive com um salário razoável de artista residente da Universidade de Campinas. É franca, arguta e amável, cultuando um humor impagável e a memória imutável de emoções por atacado: descrevia com perfeição a aura doentia do mineiro Lúcio Cardoso, percebida num encontro três décadas antes. Outra de suas recordações mais antológicas tem como cenário o ano de 1957. A alegoria da rica em Paris, onde passou seis meses. Cassinos, festas, boates, shows. Marlon Brando filmava na capital francesa um fiasco chamado Os deuses vencidos (The young lions), de Edward Dmytryk. Hilda, uma tiara de brilhantes escorrendo na testa, vestida por Christian Dior, muitos martinis na cabeça, subornou o porteiro do Hotel Ritz, batendo à porta do apartamento do astro. Disse: “Monsieur Brando, sou uma jornalista brasileira e quero-o. Vim de longe para isso”. A beleza da jovem não o comoveu. Ele, aos 33 anos, oxigenado, baixo, de “foulard” e “chambre” de seda cor de vinho. Nada da aparência selvagem, rebelde e magnética. Deixou à vista o ator francês Christian Marquand , nu, deitado numa cama de casal. Seria o parceiro do “fallatio” fotografado e exibido por Anna Kashfi nos tribunais. A primeira derrota amorosa da poeta. Logo ela que recusara o amor de Carlos Drummond de Andrade, mestre que dedicava-lhe poesias sensuais e seguia-a pelas ruas do Rio de Janeiro. “Lygia (Fagundes Telles) apresentou-me a ele, e entre nós havia comoção”, relembra. Namorou Dean Martin, Jeff Chandler, Tony Curtis e o milionário Howard Hughes. “Fui lindíssima e sofisticada, inteligente. Nunca uma dessas dondocas sem nada no crânio”. Teve nos braços também Vinicius de Moraes, e acredita não ter nascido para a felicidade e a dedicação matrimonial. . Considerada semelhante a francesa Jeanne Moreau, um dos atributos femininos de sucesso dos anos 60, depois de esnobar vasta fieira de pretendentes, escolheu o escultor sem tostão Dante Casarini. Achava-o belo como ninguém
Quando não está enfastiada, em noites de finíssimo “timing” cômico, protegida por ávidos adoradores que cortejam o tom da sua graça, Hilda conta e reconta o passado frenético, enquanto grilos cantam no imenso jardim, pássaros noturnos varam a escuridão e sombras macabras, quase vivas, sugerem terror. Ela ama as ervas, as águas, os bichos, os insetos, O Oculto. Sabendo que o homem moderno é um encurralado, consulta freqüentemente o I Ching, os olhos expressando magnetismo e tensão.
É difícil cavar o fosso entre a legenda e a realidade. Segundo um dos personagens de Dostoievski, um homem saciado não pode compreender um faminto e nem mesmo um faminto pode compreender um outro. Num passado mais distante, o seu elegante apartamento na grande São Paulo, decorado com peças antigas, compondo um cenário à Luis XVI, era uma festa permanente. Ela vivia pintada, penteava-se com Jambert, usava perfume L’expression de Jacques Fath, casaco de vison, uma Mercedes Benz à disposição e rodeava-se de prata, de cristal e champanhe francês. Nessa residência que terminou vendendo, circulavam Lupe Cotrim, Olga Savary, Mira Schaendel, Teresa Austragésilo, Jô Soares, Cassiano Gabus Mendes, Rofran Fernandes, Renata Pallotinni, Massao Ohno, Almeida Prado, Cecília Thompson, Leo Gilson Ribeiro, Ariclê Perez – um elenco proustiano. Aos 34 anos leu Cartas a El Greco de Nikos Kazantzákis e a obra levou-a a isolar-se em Campinas em 1967. O exílio voluntário pouco adiantou. Jornalistas, diretores teatrais, professores universitários, místicos, atores, escritores de todo o Brasil e nomes notórios  procuram-na. A sua caixa postal está sempre recheada. Gentílissima, hospeda-os, mas jamais incentiva carreiras literárias ou responde cartas. Ela não oferece o amor, somente a análise, a gênese, a dialética e as perspectivas.
Hilda acredita que seu melhor livro é Qadós (1973), que levou um ano escrevendo. É doce e generosa, mas pode ser rancorosa e infeliz. Com um negativismo intrínseco, culpa a “combustão existencial”. Não acredita nos caminhos agrestes da literatura brasileira, com exceção de Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Esbraveja contra a mediocridade renitente, não apreciando o relato, a história factual. Queixava-se sempre dos editores, “nunca consegui um editor que me amasse, um Jerôme Lindon”. Esta cólera em relação ao mercado editorial, que nunca soube distribuir os seus livros e divulgá-la, levou-a a criar a falada trilogia erótica.
Os demônios da vida de Hilda são o medo da demência e o pavor do anonimato. Ela começou a escrever para se livrar do fantasma da esquizofrenia. O pai, o fazendeiro Apolônio Almeida Prado Hilst, enlouqueceu aos 33 anos. Alto, bonito, intelectual, escrevia poesia e crítica literária, sob o pseudônimo de Luiz Bruma, para um jornal de Jaú. Aos 16 anos, num clima ambíguo e nebuloso, visitou-o no sanatório levando seus primeiros poemas. Ele não os leu. A mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, perdeu também a razão. Por causa desse pavor da loucura, fez da palavra uma experiência espiritualizada. Como, por exemplo, em A obscena Senhora D (1979), uma parábola provocante: “de onde vem o Mal, senhor? / misterious iniquitatis, Senhora D, há milênios lutamos com a resposta, coexistem bons e maus, o corpo do Mal é separado do divino / quem criou o corpo do Mal? Senhora D, o mal não foi criado, fez-se, arde como ferro em brasa, e quando quer esfria, é gelo, neve, tem muitas máscaras, por sinal, não gostaria de se desfazer das suas, e trazer a paz de volta à vizinhança?”.
O trabalho de Hilda Hilst permanecerá nos cérebros sensíveis. O que é excepcional é que se esforça para não ser consumida de forma descartável. De natureza religiosa, múltipla em seu fervor místico, em sua busca metafísica e indagação filosófica. O grotesco, o lúdico e a bandalheira, aliados a erudição e ao experimentalismo da linguagem. De sua obra  pode ser dito o mesmo que José Lins do Rêgo disse a propósito da obra de Lúcio Cardoso, “Carne incendiada de pecado”.

   (*) Fragmentos do ensaio com o mesmo título, 1992.

Antonio Júnior
De Barcelona
 
 

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