Quando meu pai faleceu,
setembro de 1977, entendemos — os irmãos — que nossa mãe,
sozinha, deveria ir morar com os filhos. E por isso desmanchamos o seu
lar, empacotamos seus objetos queridos e ela ficou perambulando de casa
em casa. Uma semana na casa de um filho, outra semana na casa do outro
filho, e assim achávamos que ela estava feliz.
Mero engano. Um dia, uma
prima me disse que minha mãe esteve em sua casa e chorou muito,
alegando que não agüentava mais a sua vida de cigana, andando
de déu em déu, que sentia falta de seu cantinho, e que se
pudesse alugaria um barracão para refazer de novo o seu lar, a sua
vida.
As afirmações
da prima me comoveram. Até então eu não tinha atinado
para esse problema que afligia minha mãe, que poderia até
concorrer para diminuir o tempo de sua permanência entre nós.
Na mesma semana, sem que
ela soubesse, comecei a construir a sua casinha no quintal de minha casa,
contendo um quarto-suíte, sala, cozinha, alpendre, área de
serviço e um pequeno espaço no quintal para que ela cultivasse
suas plantas e colhesse rosas para o seu oratório de orações.
Plantei, também, um pé de jabuticaba, vindo de sua terra
natal, Pirenópolis, para que ela pudesse estar bem próximo
de suas raízes sentimentias. Era o mínimo que eu poderia
oferecer àquela onde bebi o néctar da vida.
A inaguração
da casinha foi uma tarde de muita surpresa seguida de música, emoção
e cantoria. Minha mãe tinha passado uma temporada no Rio de Janeiro,
na casa do mano Gilberto, e ao retornar a Goiânia, foi perguntando
em que casa de filho ela iria ficar. Disse a ela que a primeira semana
seria em casa. E qual não foi a sua surpresa ao chegar e encontrar
a sua casinha, toda montada, fogão, geladeira, telefone, televisão,
e todos os seus objetos queridos, até então esparramados
pelas casas dos filhos. Foi um momento inesquecível, ela sorria
e chorava ao mesmo tempo, enquanto seus filhos, netos, irmãs e amigos
cantávamos acompanhados de violão e bandolim (a sua paixão),
as modinhas que ela mais gostava, destacando-se "Rosas", imortalizada na
voz de Maria Augusta Callado e Eloy Camargo: "Rosa colhia sozinha/ lindas
rosas no jardim/ Porque nas faces já tinha/ As rosas cor de carmim/
Cheguei e disse, oh Rosa!/ qual destas rosas me dás/ As da face
primorsa/ ou as que colhendo estás?/ Ela fitou-me sorrindo/ De leve
se enrubesceu/ Depois ligeira fugindo/ Se longe me respondeu:?/ — Não
dou-te as rosas da face/ nem as que trago na mão/ Daria se me estimasses/
as rosas do coração". Ao ouvir esta canção,
que tanto marcou a sua infância, e agora cantada num coro de vozes
familiares, minha mãe chorava e a sua felicidade contagiava e comovia
a todos nós.
A sua casinha tornou-se
o centro de reencontro familiar, que perdurou por dezoito anos. Era onde
hospedava o mano Gilberto, quando vinha do Rio de Janeiro. A família
sentia que ainda existia um tronco resistente, capaz de reuni-la, de torná-la
mais próxima, e chegavam os irmãos, os sobrinhos, os netos,
e minha mãe na cozinha, fazendo doces, biscoitos, café, e
depois assistindo novelas, costurando, conversando ao telefone com amigas,
parentes, tocando bandolim e completava a sua rotina escrevendo as memórias,
em longos manuscritos. Foi nesse cantinho de paz que ela escreveu o seu
livro História da menina de Pirenópolis, quando completou
80 anos de vida.
Sua casinha era um oratóriod
e orações, onde ela conversava com Deus e seus mortos queridos,
o que me faz lembrar a quadrinha de Adelmar Tavares: "Eu vi minha mãe
rezando/ aos pés da Virgem Maria/ era uma santa escutando/ o que
a outra santa dizia". Mas, evocando Alberto Camus, "e como ela levava uma
existência divina, Deus tomou-a para si, e ninguém nunca mais
a viu".
A casinha de minha mãe
continua. Alguns objetos de estimação foram levados de lembranças
pelos filhos e netos. Mas eu sinto que tudo continua como antes. Há
em mim uma certeza: de que minha mãe está lá, rezando,
tocando bandolim, alegre, esperando-me para o cafezinho e para dar-me a
bênção diária.
José Mendonça Teles