Coração
Nauseado – parte II
Eu ainda estou aturdida com a notícia dos presos que comeram
o coração de um detento, assado em um churrasco regado à
pinga, em Ribeirão Preto.
Estou aturdida, sim, mas feliz. Feliz comigo mesma. Porque ainda me
choca ver esse tipo de notícia. Porque ainda me espantam atitudes
boçais. Porque não acho normal assistir passivamente cenas
de tamanha monstruosidade e me acho normal ao pensar e reagir assim.
Quero eternamente ter esta necessidade de expelir sentimentos de revolta.
Quero ter esta vontade de disseminar o meu grito de espanto. E quero ter
o prazer de receber inúmeros e-mails concordando com meu berro (ou
lamento?), comprovando que eu não sou a única a pensar assim.
Comprovando que eu não estou sozinha no mundo com sentimentos de
pasmo, incrédulos, impotentes...
Ao enviar à várias listas de discussão o artigo
"Coração Nauseado" eu já esperava determinados tipos
de reações. Sabia que muita gente iria rir. Porque sei que
muitos riram ao ver as imagens na TV. Porque sei que muitos riram ao ler
a manchete nos jornais. Porque sei que muitos riram ao ouvi-la em programas
policiais-sangrentos. E ainda estão rindo.
Na verdade, quero aqui confessar: não sei se o que mais me prostrou
foi a notícia em si ou as reações das pessoas. Dos
que riram e dos que deram de ombros. Dos que não leram e nem querem
saber. Dos que vibraram e até comemoraram. Dos que lamentaram não
ter sido avisados da ceia.
Mas não culpo quem riu. Não. Quem riu não tem
culpa. Presos comendo churrasco de corações humanos são,
sim, motivo para riso. Afinal, o que é coração? Como
disse um leitor, nós ainda temos isso?
Estamos tão saturados de violência que queremos mesmo
é que os presos se comam, uns aos outros. Assim ficamos livres logo,
não é mesmo? Na verdade esse ato de canibalismo deveria ser
seguido por todos os delinqüentes, menores cheiradores de cola, flanelinhas,
políticos corruptos, indigentes a vagar e enfear nossas ruas e praças...
Por que não na praça? Sim, marquemos um grande churrasco
em praça pública ! Onde comeremos corações
humanos e riremos, riremos muito... gargalhadas altas, farfalhantes, realizadas
pelo dever cumprido.
Mas nada de regar à pinga. Pinga é coisa de pobre. E
como um certo leitor escreveu, "todos sabem que coração na
brasa só fica bom regado a vinho merlot". Na verdade eu não
bebo, mas ele deve entender de vinho (de coração, já
não sei).
Outro leitor disse: "atividades nefastas existem desde que o mundo
é mundo, vide Herodes, Inquisição, Nazismo, Máfia...
e por aí vai. Não se espante, o mundo é uma balança,
num prato o Mal, no outro o Bem, e o equilíbrio faz o mundo continuar".
Sabe, eu quero mais é me sentir normal ao achar tudo isso anormal.
Porque no dia em que eu parar de me indignar, no dia em que eu não
mais ficar chocada e aturdida, no dia em que eu perder a capacidade de
discernimento, no dia em que não me incomodar atitudes abomináveis...
no dia em que eu rir de churrascos de corações humanos, é
porque, definitivamente, eu não entendo nada de coração.
Então... podem fazer do meu, churrasco em praça pública.
Mas reguem à pinga.
Isabel Machado
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