UMA HISTÓRIA DE AMOR

    Eu estava em Curitiba, participando de mais um Congresso da minha especialidade. Tentara todos os telefones de que dispunha e não conseguira localizá-la. Arrisco. Uma amiga me leva até o pequeno sítio, retirado, e deixa-me à sua porteira para apanhar-me depois. A ditadura militar já se autodestrói. Não há mais perigo para nós ambas.

    Ao longo da trilha que conduz à casa tão simples, não vejo ninguém. Chamo pelo seu nome enquanto caminho e ouço, então, uma voz que eu já não ouvia há quantos anos, meu deus? Certamente, mais de vinte... Uma voz que sem ver-me reconhece a minha e grita meu nome!

    Eu os conhecera no início dos anos sessenta. Movimento ecumênico de estudantes. E logo nos tornamos mais que amigos: irmãos. Ele, filho de missionários americanos, sociólogo, com uma firmeza de argumentação, convicção e coerência jamais vistas e com as quais sua vida era absolutamente coerente, tudo contrastando com a infinita ternura de seu olhar. Ela, brasileira, professora, apaixonada por arte, sensibilidade à flor da pele e, no olhar, sim, a mesmíssima infinita ternura. E quando os dois se olhavam, o mais belo poema de amor era escrito.

    Eu, ainda totalmente ignorante em matéria de política, bebia as palavras de Paulo Stuart Wright sobre o Trabalhismo de Pasqualini. Filiado ao PTB de então, o sociólogo trabalhava como operário em uma fábrica. E como tal vivia, com sua Edimar, numa vila operária. Encontrava-me sempre com ele em nosso grupo de estudos sobre o existencialismo. Meu então noivo, participante destes encontros, também o via sempre na própria Vila Anastácio. Com Edimar, as confidências mútuas de amigas e irmãs. Certa noite fui jantar com eles. O cardápio era arroz com ovo frito. E com ela aprendi esta arte tão simples e complicada para tantos: preparar um ovo frito perfeito, daqueles em que a clara não agarra na frigideira, fica branquinha e macia, e a gema, no ponto em que o faminto a deseja!

    Ao voltar de uma longa viagem de trabalho, entrara em nossa séde e encontrara Paulo. Abraçamo-nos e pergunto por Edi. Com os olhos só dor ele me contou – o nenem que esperavam nascera morto. Ele se recusara a aceitar qualquer oferta de médico e hospital particulares. Edi fora, como mulher-de-operário, levada a um hospitaal do INPS da época, igualzinho aos atuais do INSS... Esqueci todo o trabalho que me aguardava. Voei atrás da amiga. Conversamos por toda a tarde. Fomos a um cinema. Levei-a para lanchar. Choramos juntas.

    ...E agora novamente estou diante dela, sobre uma cama. Os pés cianóticos. O diabetes avançado já lhe trouxera também problemas cardíacos. Ambas sabemos que Paulo foi morto pela ditadura militar. Mas enquanto o corpo não for encontrado, fica sempre aquele tênue fio de esperança... E eu não a via desde 1964, quando viera acompanhar seu amor, então Deputado Estadual por Santa Catarina, ao Rio para que se asilasse na Embaixada do México. Edi estava com uma velha e gasta e única muda de roupa sobre o corpo. Todo o salário do marido fora para a criação de Cooperativas de Pescadores. Com dois filhos pequenos, ela já era Mestra em sobreviver com o mínimo do mínimo.

    Sobre tudo conversamos sem controlar a emoção mútua. Contei-lhe de minha última conversa com Paulo, em minha casa, onde volta e meia se abrigava quando no Rio. Pedi-lhe que me explicasse como conciliava o amor extremado pela família e o que dedicava à causa abraçada, sua luta clandestina a favor do povo brasileiro. Suavemente explicou-me o óbvio: o futuro de seus filhos dependia do que se conseguisse construir para todos...

    Agora, porém, minha preocupação era com a saúde da amiga. Que criara os filhos naquele sítio, plantando, colhendo, de uma única vaca literalmente tirando o leite para as crianças, vestindo-as com o que seus amigos espalhados por este país conseguiam fazer chegar-lhe às mãos. E volta e meia levando os filhos, por trilhas cuidadosamente preparadas mas sempre perigosas, a se encontrarem com o pai, clandestino no país, cabeça procurada. E resistindo bravamente às fortes críticas da família em relação ao marido.

    É incrível o peso da visão maniqueísta nas relações humanas. Para a família de Edi, todo o "mal" estava com Paulo, mau marido, pai irresponsável, aventureiro... Para muitos companheiros dele, porém, era o contrário: Edi seria a má companheira, a dona de casa alienada que deixara de acompanhar o marido na luta clandestina... Na realidade, enquanto uma cuidava do presente dos filhos, o outro lutava pelo seu futuro e o de todos nós!

    Mal sabia eu que não veria Edi outra vez. Os tratamentos alternativos a que se submetera não chegaram a tempo. Alguns anos depois, voltei a Curitiba e Leila vem apanhar-me para acompanhá-la ao velho sítio. Seu pai agora era nome de sala na Assembléia Legislativa de Santa Catatrina. Sua mãe, nome de Escola na zona mais pobre da cidade. No caminho, ela me fala do mal-estar que sentia de haver comprado o carro, de que tanto precisava, com a indenização finalmente recebida do governo pelo "desaparecimento" de seu pai. Passamos pelo pequeno e bucólico cemitério, verde e florido, onde o que restou do corpo de Edi espera até hoje pelo de Paulo. Mas Leila ( também não poderia prever – nunca mais tornaria a vê-la!) me dá outras muitas emoções. De repente, me diz haver entendido porque doara todas as roupas e objetos da mãe, menos um suéter branco – ele havia sido guardado para mim!
 
 

    Hoje, cada vez que viajo para o frio ou que este gela minha alma, visto o suéter branco e me sinto envolvida e protegida pelo mais radical, profundo e transformador Amor de que os homens são capazes... O amor que resiste a todos os mais duros embates e separações, o amor-liberdade, que não domina ou escraviza mas libera um ao outro para ser o que é, realizar sua própria vida e história; o amor que se divide e atinge a todos os que o cercam; que se entrega e ilumina o caminho da transcendência. (João Paulo, amado, de alguma estrela o profundo azul dos olhos de seus pais e irmã certamente nos enviam a luz necessária a nossas vidas e a este tão desafiante início de milênio.)

Maju Costa


 

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