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Meus olhos, ainda turísticos em relação ao Sul, deleitaram-se com a quantidade de colonos de cabelos louros e bochechas rosadas. Aproveitei e viajei no tempo, relembrando as viagens com meus pais a bordo de um fusca 69 verde-folha. Nunca me embrenhei com eles por Santa Catarina. Aqui, acho que visitamos somente Floripa, Laguna, Blumenau e Joinville. Paramos também em Itapema e Barra Velha, então duas praias desertas, com exceção do hotelzaço recém inaugurado na primeira.
Havia, entretanto, as visitas aos parentes no Norte Velho do Paraná
— região de Londrina, Cornélio Procópio, Bandeirantes,
Maringá e outras cidades menos cotadas - e aos de Passo Fundo, no
Rio Grande do Sul. Esses vínculos familiares faziam-nos trafegar
por estradas secundárias, ladeadas por pequenas propriedades. Uma
cerca, uma casa de madeira, um laguinho e uma
araucária... Prato cheio para pintores de painéis de
botecos e churrascarias, está certo, mas quadros lindos ao vivo.
Papai, sem enxergar direito, perguntava:
— Tem um pinheiro e uma aguada?
À resposta afirmativa, dizia satisfeito e sorrindo:
— Quero comprar essa "propiedade"!
Ele sonhava... Devia lembrar dos seus tempos de garoto nômade pelos interiores do Sul, ao sabor dos delírios ambulatórios de meu avô. Já bem mais tarde, falava em vender a casa da Tijuca e bandear-se cá para as origens, comprar um pedaço de terra com pinheiro e aguada. Eu sonhava junto e dizia que tinha que ser em Santa Catarina, mas qual:
— Não quero saber de Santa Catarina! Tem que ser no Rio Grande ou no Paraná!
Este meu estado de adoção, na época de meu pai, acredito que era um quisto de atraso entre seus dois vizinhos. Talvez, entretanto, sua enérgica reação fosse movida não pelo desprezo à terra, mas por uma animosidade nunca totalmente resolvida em relação ao catarinense que me coube na vida. O velho não sabia da missa a metade mas, oh, como estava certo!
Papai dizia que queria o contato com o campo outra vez, ter cavalos e vacas, ouvir barulho de água, sentir cheiro de mato... Fiquei chocada quando mamãe me disse uma vez:
— Ele quer fugir da prisão, mas mudar de lugar não resolve! A prisão está dentro dele!
Intimamente, dei-lhe razão, mas achei-a tão friamente racional falando assim do velho! Percebo hoje o quanto ela se remoía por dentro ouvindo as fantasias do meu pai. Nelas, havia uma esperança de ser mais livre e mais feliz, que mamãe sabia ser falsa e por isso sofria. O universo físico dele eram a casa e sua varanda, por onde podia transitar "de olhos fechados" e onde seus cada vez mais parcos amigos viventes iam visitá-lo.
Maria Emília Berthier