Lá pelos idos de cinqüenta comecei a ler o que minha mãe chamava Literatura. E leituras fiz, pela vida que foram minha própria vida.
Teria onze, doze anos, naquela época? Talvez. Antes daquilo, só literatura infantil: contos de fadas e histórias contidas numa tal Coleção Amarela, que ganhei quando viajei À Argentina com minha avó, presente de mamãe, um tesouro verdadeiro, que ela deve ter dado a alguma instituição, junto com a mobília, no tempo que saímos também de nossa grande casa, por que vovô tinha falecido ...e ela estava fora de si. Lembro de Hans Christian Andersen, um livro em Inglês, repleto de mistérios e figuras antigas, encadernado em cor-de-rosa... lindo, mesmo.... Quando entendi o que dizia, muito mais tarde, não gostei. Mesmo histórias de fadas têm de ter alguma lógica, afinal.
Desde que me lembro por gente, estive rodeada por uma biblioteca razoável. Alguns livros eram encadernados, com as iniciais de minha mãe, ávida leitora: Coelho Neto, e seus contos impressionantes, Aluísio Azevedo, Stephan Zweig, que foi simplesmente minha sombra, enquanto adolescente. Jamais poderei esquecê-lo, lia e transcrevia passagens de seus escritos, com minha letra mal feita, parágrafos inteiros de seus livros torturados. E os relia, vez por outra, exaltada, pensando se haveria no mundo uma alma irmã para compartilhá-los. Ainda não encontrei a tal alma. Mas também já não gosto tanto de Stephan Zweig! Entre parênteses: a vida é sábia.
Outros haviam, proibidos, Mario Donato com Presença de Anita
e ...Bom Dia Tristeza, de Françoise Sagan, que li vorazmente e nada
me disse. Poetas não encadernados e maravilhosos: Vinícius
de Morais, JG. de Araujo Jorge, Paul Geraldy (não era traduzido,
e eu em minha ânsia para entender, achei que tête era têta,
o que levou meu tio a caçoar de mim por um bom tempo), Guilherme
da Almeida, o maior romântico, - minha mãe contava empolgadamente
sobre o dia em que, lá pelos idos de 30, ela, mocinha, e sua turma
de escola, receberam o poeta que declamou: " Você! " , ante júbilo
e desmaio das
jovens!.
Comecei a escrever poesia, então, na adolescência, a rimar amor e dor, minha mãe aplaudindo aquelas blasfêmias juvenis, que logo encheram um caderno brochura de duzentas folhas. Eram poemas sentimentais, chorosos e sanguinários, escritos à mão, ainda tenho o caderno, onde estão salpicadas as gotas de suor manchando as páginas, suor de amantes poetas, que me liam em camas várias e dentro do carro, em meio a horas roubadas e amores pecaminosos, bem ao estilo da época! Com certeza mais li que escrevi, naquela época. Literatura séria entremeada de livros de bolso comprados em bancas de revista, histórias de crimes, mistério, um vício atroz, eram lidos dois livros ao dia, sem contar as histórias em quadrinhos, como O Cavalheiro Negro, Fantasma, que ao preço de dez usadas por uma nova! Devorava tudo. Só encontrei homens tão interessantes como nos gibis no cinema, mais tarde, representados por Marlon Brando e Sean Connery.
Tracei a obra de Garcia Marques, como traça aguardei pacientemente por quase cem anos, para ler a maravilha, em imensa solidão que os livros mitigavam, página após página... eu lia. Eça de Queiroz foi outro, uma frustração o homem estar morto, não haveria mais livros como aqueles! Mas, há alguns anos, foi encontrada "A Tragédia da Rua das Flores", inacabado livro, um tesouro, uma relíquia. Quanto a Machado, o grande, só tardiamente consegui compreender e penetrar o meandro de seu talento. Felizmente ele me aguardava, intacto. Viajei, viajei lendo tanto, lendo muito e mais: li tanto que hoje me espanto de ler tão pouco. Guardava livros sob a pasta de deveres escolares, para ler às escondidas. Na escola, nada: medíocre e vadia.
Depois que comecei a escrever, mais e mais, principalmente nos últimos dez anos, parece que escolhi escrever por mim mesma o que desejava ler, invejando, no entanto, e profundamente, o talento de Rubem Fonseca, um mestre. E por falar nele, Patricia Melo, que seguiu suas pegadas, com jeito próprio. Encanta-me seu livro O Matador, que maravilha!. Bem sei que estou a anos luz de toda essa gente, e não citei nem a metade dos grandes.
Continuo escrevendo como quem precisa continuar vivendo, e para isso imaginando histórias, um vício antigo que me persegue, e que só tem semelhança com O Vicio Da Paixão, de Erica Jong, um livro que inesperadamente impressionou muito. Fora Anne Rice que deu vida a uma espécie criada de sua imaginação, mulher de raro talento, a criar seres com psicologia própria, a ela só comparo Azinov, em seu " Eu, Robô", livro para ler de joelhos. São deuses, criaram espécies. A eles, modestamente me comparo, quando criei a espécie dos demônios, com desejos e leis próprias. Acho que tal façanha nos aproxima da criação máxima. Que seja O Pacto citado, portanto, e também!
Fora isso, salve Baudelaire, irmão de Áries, Lygia Fagundes Telles, Zemaria Pinto, Leila Míccolis, enorme em sua criação, salve os talentos ocultos pelo não oportunismo da época, mas que é fácil reconhecer numa simples leitura. E nesta resenha incompleta, que me perdoem Agatha Christie, Scott Smith, Heloisa Seixas, com seus preciosos contos, Emily Dickson, Ignacio de Loyola, saravá! Lawrence Sanders! A bênção, pais e mães!
Clélia Romano